Propriedade e Espaço em Locke


Jorge Alberto S. Machado

Universidade de São Paulo, 1995




http://www.forum-global.de/bm/articles/locke3.html






A princípio entendemos como espaço uma determinada área compreendida entre um ponto e outro, cuja área pode conter ou não alguma coisa e espaço natural como uma determinada área ainda encontrada em seu estado físico primitivo da natureza, inalterada ou desprovida do trabalho e da ação do homem. Esta definição de espaço e espaço natural por si só, pode parecer um pouco vaga, mas quando focalizadas à partir de determinadas perspectivas, passa a tomar sentido específico e ser essencial para a sua compreensão. É o caso da ciência política quando estudamos Locke em seu conceito de propriedade e legitimidade (da apropriação). A noção de espaço e espaço natural se faz bastante patente como pano de fundo em sua argumentação. De acordo a asserção de Locke, seria uma área comum a todos os homens enquanto não apropriada pelo seu trabalho e colocada ao seu benefício por Deus, tendo aos homens a possibilidade potencial de usufruí-la. Por propriedade – substantivo derivado do adjetivo latino proprius – entendemos aquilo que é de um indivíduo específico ou de um objeto específico, sendo apenas seu, logo seguido da implicação jurídica: "direito de possuir alguma coisa"1


Para Locke a apropriação do estado natural se dá e é legitimada somente pelo seu próprio trabalho, ou por sua própria definição: a modificação que ele pode fazer numa determinada área pelo trabalho de seu corpo e obra de suas mãos2 sobre o que for que a natureza o deixou – que antes de sua apropriação era comum a todos os homens ("estado comum"), ou espaço comum, como chamaremos em nossa acepção.

Segundo Locke em sua obra "Segundo Tratado Sobre o Governo":


"Deus e a própria razão lhes ordenavam dominar a terra, isto é, melhorá-la em benefício da vida e nela dispor algo que lhes pertencesse, o próprio trabalho. Aquele que em obediência a esta ordem de Deus, dominou, lavrou e semeou parte da terra, anexou-lhe por esse meio algo que lhe pertencia, a que nenhum outro tinha direito nem podia, sem causar dano tirar-lhe".3


A anexação ocorre em função de seu próprio trabalho já que toda a ação que deriva de seu corpo é de propriedadedo homem, "seja o que for que ele retire do estado que a natureza forneceu e qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho"4, juntando-se a algo que lhe pertence e tornando-se, por conseguinte, propriedade dele, retirando do estado comum que a natureza o colocou.


Ao apropriar-se do espaço natural pelo seu trabalho o homem estabelece a distinção: "juntou-lhes algo mais do que fez a natureza, mãe comum de todos, tornando-as assim direito privado dele". Prossegue Locke exemplificando: "assim a grama que meu cavalo pastou, a turva que o criado cortou, o minério que extrai em qualquer lugar aonde a ele tenho direito em comum com outros, tornan-se a minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de qualquer pessoa. O trabalho que era meu, retirando-os do espaço comum em que se encontravam, fixou a minha propriedade sobre eles5.


Para Locke seria ilógico se o homem tivesse que, para legitimar sua apropriação do espaço natural, esperar pelo consentimento de todos os homens. Se fosse assim o homem morreria de fome apesar de toda a abundância possível.



O trabalho como medida para a apropriação do espaço natural


Já citamos que, para Locke, o que legitima a apropriação do homem ao espaço natural é a ação do seu corpo pelo trabalho. Mas quais são os limites para a sua apropriação? Afirma Locke que a medida de sua propriedade é a extensão de seu – próprio – trabalho e conveniências da vida6, ou seja, nenhum homem podia dominar ou apropriar-se de uma área cuja fruição limitar-se-ia a uma pequena parte dela, pois assim estaria usurpando o direito do outro de usufluir pelo seu trabalho do espaço natural – estado comum – pertencente a todos. O trabalho do homem deve ser diligente e racional para servir-lhe como direito de posse. Assim afirma Locke:


"A tudo que existe de bom que a natureza fornece em comum, qualquer pessoa tem direito (...) nas quantidades de que possa usar, adquirindo a propriedade sobre tudo o que pode levar a efeito pelo trabalho; pertencia-lhe tudo aquilo que a sua indústria era capaz de extender-se, a fim de modificar o estado em que a natureza o dispôs. Aquele que colhia cem alqueires de bolotas ou de maçãs, adquiria, por esse motivo, a propriedade sobre elas; eram seus bens logo que colhidas. Tinha somente de ter o cuidado de usá-las antes de estragarem, para não tomar parte maior do que lhe cabia, com prejuízo de terceiros. E na realidade era estrambótico, tanto como desonesto, guardar mais do que pudesse utilizar(...)"7.



O direito de posse pela apropriação do espaço é somente legitimado quando o homem é capaz de usufruir sem desperdício ou prejuízo de outrem tudo aquilo que poder extrair ou produzir no espaço natural. Ou melhor, sem causar dano ao espaço natural comum – reserva comum, segundo a acepção de Locke – ou espaço natural comum potencial, como podemos chamar, porque ao passo que se possui espaço demasiado ao seu usufruto ou é patente seu desperdício, significa que há um excedente do espaço natural apropriado da reserva comum e esse excedente seria o potencial comum, a ser apropriado pela ação de outrem.


Se aquele que apropria do espaço pelo efeito do trabalho é capaz de obter uma quantidade maior do que necessita ao seu usufruto imediato e é capaz de trocar por objetos que durem mais ou mesmo a vida toda, sem causar dano ou desperdício, é legitimada a posse, seja qual for a sua extensão. A isso afirma Locke:


(...) E se trocasse ameixas que apodrececeriam em uma semana por nozes que o alimentassem por durante um ano, não causava dano; não desperperdiçava a reserva comum, não destruia parte da porção dos bens que pertenciam a terceiros, logo que não se estragassem inutilmente em suas mãos. Ainda mais, se trocasse as nozes por um bocado de metal, cuja cor lhe agradasse(...) ou a lã por pedra cintilante ou diamante, e guardasse esses objetos por toda a vida, não invadiria os direitos de terceiros; poderia acumular qualquer quantidade que quisesse desses objetos duradouros; não se achando nos extremos dos limites da sua justa propriedade na extensão do que possuia, mas no perecimento de tudo quanto fosse inútil a ela.8

Daí a origem do dinheiro – algo de duradouro que os homens podem guardar sem estragar-se e por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida, verdadeiramente úteis mas perecíveis9.


Locke concebeu o trabalho como o princípio que dá início ao direito de propriedade do que havia de comum na natureza – estado comum – , e, na nossa abordagem, espaço natural, que é o seu mundo exterior sensorial objetivo, onde encontram-se os recursos necessários para a manutenção da vida, onde marca seu território10 e afirma, pelo usufruto, a sua propriedade.

Cultivar a terra significa ter o domínio efetivo da mesma, o que dá a legitimidade pelo seu labor e o direito de posse do espaço natural, isto é bem claro em Locke quando tomamos a afirmação:


"Daí se vê que dominar ou cultivar a terra e ter domínio estão intimamente conjugados. Um deu direito a outro. Assim Deus mandando dominar, concedeu autoridade para a apropriação; e a condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade privada".11

Na nossa abordagem de Locke entendemos que a noção de propriedade – da terra – exige e significa necessariamente a apropriação do espaço. Esses elementos – propriedade e espaço – estão estreitamente ligados. Cabe-nos também ressaltar e analisar como se dá a legitimação de seu uso na acepção lockiana. O que se constata é ser a ação do homem, que tem como princípio a propriedade do trabalho de seu corpo e de suas mãos, o meio capaz de extrair do estado comum o que seria o produto de sua ação, e este, por sua vez, anexado a ao seu labor, passa a excluir o direito comum dos outros, o que lhe confere a legitimidade da apropriação privada do espaço natural e lhe dá o direito da posse. Assim é possível compreender em Locke, na extensão de seu pensamento e concepção de propriedade em seu postulado liberal "Segundo Tratado Sobre o Governo", a noção de espaço e sua interconexão com o conceito de propriedade segundo sua própria concepção de legitimidade da apropriação da terra pelo trabalho.

Bibliografia:


Locke, John

Segundo Tratado Sobre o Governo, in Pensadores / John Locke –2a ed. São Paulo, SP; Abril Cultural, 1978


Bobbio, Norberto

Dicionário de Política / Norbrto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino – 4a ed. / Brasília, DF; Editora Universidade de Brasília, 1992


Macppherson, C. B.

La Teoria Política del Individualismo Possessivo – 3a ed. / Barcelona; Editorial Fontanella, 1970



Moraes, Antonio Carlos Robert de

Apostilas: 10a aula – Relação Homem / Natureza e Teoria do Valor

12a aula – Fixação Geográfica do Valor e Capital Fixo



1 Bobbio, Norberto, in Dicionário de Política, pág. 21 – 4a ed. – Brasília, Ed. Universidade de Brasília,1992

2 Locke, John, in Segundo Tratado Sobre o Governo, cap. V, parágrafo 27 – 2. ed. – São Paulo, Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)

3 Idem, ibidem, par. 32

4 Idem, ibidem, par. 27

5 Idem, ibidem, par. 28

6 Idem, ibidem, par. 36

7 Idem, ibidem, par. 46

8 Idem, ibidem, par. 46

9 Idem, ibidem, par. 47

10 Usando o termo apenas num sentido complementar do texto, sem se aprofundar na sua conceituação.

11 Ob. cit., par. 35