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  Tempo Livre e Civilização
(Versao original de três artigos publicados no jornal "NH" - Novo Hamburgo - 26/06/1999)

Refer.: Machado, Jorge Alberto S. e Schirmer, César (2000) - Tempo Livre e Civilização,
http://www.forum-global.de/bm/articles/tempoli3.htm

 

 

César Schirmer e
Jorge Alberto S. Machado

 
Diferentes épocas e lugares tiveram diferentes situações relacionadas ao tempo, seu uso e sua fruição. Falar em tempo livre para um indivíduo de uma sociedade coletora leva a consequências diferentes daquelas às quais chegamos ao pensar o modo como os indivíduos do Norte e Sul aproveitam-no. A atividade de coleta de frutos, da caça e da pesca não são exercidas como as atuais atividades do homem, que são coordenadas, onde fazemos apenas uma parte de um produto final que talvez nem cheguemos a conhecer. Pelo contrário, a atividade dos coletores é essencialmente a busca do que é diretamente necessária para a própria existência, ao contrário de nós, trabalhadores modernos, que recebemos meios para adquirir os objetos necessários para a nossa própria sobrevivência. Os coletores adquirem imediatamente seu alimento, e nós algum tipo de objeto com valor de troca, com o qual adquirimos alimentos.

Assim, a sobrevivência e administração do tempo, para um coletor, é uma questão ecológica. Se há abundância de alimentos ao seu redor, e se ele não causa um desequilíbrio no ecossistema, o coletor pode ficar por bastante tempo numa região, e gastar relativamente poucas horas por dia na busca de alimentos. Mas, como disse Cabeza de Vaca, um conquistador espanhol que viveu entre os índios no século 16: "Toda essa gente não conhecia o tempo pelo sol ou pela lua e muito menos contavam mês ou ano. Entendiam a passagem do tempo pela época do amadurecimento das frutas, pelo desaparecimento dos peixes e pela posição das estrelas. Nisto eram muito habilitados. Estes índios não conheciam nem a plantação de milho. Dos oito meses que passamos com eles, seis foram de muita fome."

A criação da agricultura foi uma das maiores revoluções da humanidade, pois permitiu ao homem permanecer no mesmo lugar, sedentário. Como a atividade agrícola é mais produtiva do que a coleta, os homens não precisavam mais trabalhar todo o tempo. Ao invés de falta de alimentos, havia um excesso de produção, o excedente.

Enquanto eram coletores, os homens eram iguais entre si, pois todos tinham sempre, em geral, carência de alimentos. Com a agricultura inicia a desigualdade entre os homens, pois sobram mais recursos para uns do que para outros. Mas, o mais importante é que as sociedades que tinham mais excedentes liberavam mais pessoas do trabalho de produzir alimentos. Estas pessoas, com todo o tempo livre, passaram a se dedicar a atividades científicas, sacerdotais e militares.

Assim, quanto mais tempo livre havia, mais os homens podiam desenvolver seus próprios conhecimentos e exércitos. A consequência foi que as sociedades que mais se desenvolveram tiveram forças para escravizar as sociedades mais atrasadas, tomando para si os alimentos que elas produziam. Assim, os povos mais desenvolvidos ganhavam mais tempo livre ainda para investigar a natureza, gerar conhecimentos e erigir enormes centros urbanos.
 
 

Senhor e escravo
 
 

Nós, os defensores contemporâneos das virtudes do tempo livre, temos que reconhecer que esta questão envolve, de certa forma, a defesa ou pelo menos a compreensão dos motivos para a existência da escravidão na antiguidade. Já li vários textos de história, mas nunca vi um que provasse que os antigos poderiam ter feito tudo o que fizeram sem a escravidão. O motivo é simples: a falta de tecnologia e de máquinas tornava a produtividade individual muito baixa.

Então havia entre os sumérios, gregos, romanos e todos as outras civilizações da antiguidade a oposição entre a total liberdade dos senhores e a total carência da mesma por parte dos escravos. Todo o tempo dos senhores ou aristocratas, ou seja, daqueles que não eram escravos, mulheres ou crianças, pertencia a si mesmos, e não podemos falar da democracia ateniense sem mencionar que os cidadãos tinham todo o tempo para permanecer na praça pública (ágora) discutindo as questões da administração da cidade.

Mesmo as maravilhas do Egito antigo não podem ser entendidas sem a escravidão. Místicos e esotéricos tentam imaginar maneiras fantásticas para a construção das pirâmides. Só o que sabemos, contudo, é que esta e outras construções congêneres envolveras tantas gerações de escravos que tornam inúteis quaisquer outras hipóteses mirabolantes.

Os romanos foram campeões na questão do tempo livre. Roma, a sede do gigantesco império, tinha mais escravos do que cidadãos, de modo que estes podiam utilizar todo o seu tempo na fruição de lazeres e prazeres.

Os senhores destas civilizações tinham todo o seu tempo para si. Por outro lado, todo o tempo da vida dos escravos pertencia aos seus donos. Podemos dizer que a ausência de liberdade dos escravos era uma ausência de tempo livre, pois esses deveriam estar à disposição da vontade do seu senhor a qualquer momento.

É uma imagem comum do processo através do qual o escravo aliena seu tempo ao seu senhor a dialética do senhor e do escravo, cuja formulação mais famosa está na Fenomenologia do Espírito de Hegel. A submissão de um homem a outro seria o resultado de um conflito ou combate entre ambos, onde o perdedor entrega a sua própria liberdade ao vencedor em troca do direito de apenas continuar vivendo.
 
 

O trabalho
 
 

A visão positiva do trabalho é uma coisa muito recente na história da humanidade. Já no século 17, o matemático e filósofo René Descartes, quando perguntado sobre o quanto se dedicava ao seu trabalho, disse que este não ocupava muitas horas do seu tempo diário, e que se ocupava mais dos seus afazeres cotidianos. É possível que este homem, que gostava de acordar após o meio-dia, estivesse dizendo a verdade, mas o mais provável, pela sua enorme produção intelectual, é que se dedicasse muito ao seu trabalho, e que dizia o contrário apenas para manter os ares de gentleman, como era exigido na época.

Ter um trabalho foi considerado uma coisa negativa durante toda a antiguidade e idade média. Trabalho, nestas eras, foi primeiro uma coisa de escravos, e depois uma coisa de servos, ou seja, de seres embrutecidos e considerados inferiores.

Ser um trabalhador, durante a idade média, era o mesmo que pertencer a uma hierarquia inferior na sociedade e mesmo na natureza. Os nobres, que consideravam-se superiores aos servos, não praticavam nenhum ato que fosse próprio dos estamentos mais baixos da sociedade. Afinal, isso seria o mesmo que atentar contra a própria natureza, que colocou os senhores de terras acima dos outros homens, para ajudá-los a salvar as próprias almas.

As atividades dos nobres, aqueles que eram os donos do próprio tempo, eram todas voltadas para a guerra. Ter tempo livre, de acordo com estas tradições guerreiras herdadas dos povos germânicos, era ter a honra de ir para a guerra ou de possuir uma armadura de cavaleiro.

Os primeiros a terem uma visão positiva do trabalho são os mercadores burgueses da alta idade média e início da idade moderna. Estes homens enriquecem pelo próprio esforço, através do comércio de produtos importados do Oriente. De acordo com a visão rígida dos medievais, eles estavam pecando ao buscar o lucro, e neste ponto foi fundamental para o surgimento do capitalismo o papel exercido pelos judeus, que podiam emprestar dinheiro a juros sem atentarem contra as regras papais.

Os senhores feudais tinham posição social elevada, mas não eram necessariamente ricos. Sua posição era herdada, ou dada por um rei. Os burgueses eram comerciantes que enriqueceram ao criar companhias de exploração do comércio exterior. Quando passaram a financiar as guerras dos reis europeus, permitiram que fossem formados os primeiros estados nacionais, e regras de comércio exterior baseadas no monopólio.

Com o ressurgimento das cidades na Europa, o trabalho assalariado passa a ser uma opção para os trabalhadores que fogem das propriedades feudais. Assim, adquirem uma melhor administração do próprio tempo. Este é pelo menos um efeito colateral desta modalidade de trabalho.

Para a visão atual, de que tempo é dinheiro, tudo já está aqui preparado. Os golpes finais na concepção pejorativa do trabalho são, politicamente, a Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos, que varrem a nobreza e a sua vida ociosa. Do ponto de vista econômico é importante a Revolução Industrial.
 
 

Tempo é dinheiro
 
 

Afastados da Europa e de suas tradições, e com rifles em quantidade suficiente para exterminar os autóctones, os colonos puritanos protestantes que fundaram os Estados Unidos da América puderam criar, com bases completamente novas, uma civilização.

No seu A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber foi feliz em apontar para as idéias do cientista e co-redator da declaração de independência dos Estados Unidos, Benjamin Franklin: "Lembra-te de que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear, ou fica vadiando metade do dia, embora não despenda mais do que seis pence durante seu divertimento ou vadiação, não deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais".

As concepções norte-americanas de política são o cerne da democracia contemporânea, que está baseada no livre direito de expressão e associação intelectual, artística, política e econômica. Os americanos colocam como uma questão individual o que cada um deve fazer e em que ponto da escala social cada um está. Mas isto não leva ao ócio, e sim ao trabalho, pois há uma ética muito forte por trás desta liberdade.

Na civilização americana o status não está ligado a títulos e cargos sociais, mas ao que cada um consegue ganhar no tempo que dispõe. Podemos dizer que eles criam um novo tipo de igualdade, diferente daquela dos coletores da pré-história. Estes últimos eram iguais na carência de alimentos, e os homens da civilização americana são iguais porque podem associar-se do modo que acharem melhor para ganhar mais dinheiro no tempo que possuem.

Neste contexto ganha destaque a idéia de oportunidade. As oportunidades estão dadas. Se você não as aproveita, e sai para passear, na verdade não apenas deixou de ganhar, mas perdeu. O loser (perdedor) é uma figura importante na cultura americana. É aquele que ficou para trás, apesar de ter tido as mesmas oportunidades (o mesmo tempo) que todos os outros. Aqui a idéia maluca de que chegar em segundo é o mesmo que perder faz sentido, porque, se todos tem o mesmo tempo e a mesma liberdade de associar-se uns aos outros para ganhar dinheiro, como pode que você tenha ganho menos do que o outro? As diferenças sociais passam por absurdos lógicos e erros práticos cometidos voluntariamente por aqueles que estão abaixo dos outros.

Falar em tempo livre na América construída por Benjamin Franklin é sem sentido, pois a liberdade é liberdade de lucrar. O espírito é "sou livre para trabalhar", o que é muito diferente da liberdade dos aristocratas antigos e dos senhores feudais, que eram livres para desfrutar o ócio e a superioridade da sua posição social, exercendo seu poder autoritário sobre os homens e mulheres hierarquicamente inferiores. A lógica americana e a lógica aristocrática são mutuamente excludentes, o que nos ajuda a entender as diferenças entre a democracia grega antiga e a democracia moderna.

Os americanos invertem completamente a lógica social da antiguidade, e colocam abaixo dos outros na sociedade os losers, os ociosos, aqueles que não trabalham ou trabalham pouco.

Não há uma condenação do tempo livre no pragmatismo protestante, mas uma racionalização. Nesta ética o sucesso nesta vida é importante, pois a Terra não é, para eles, o vale de lágrimas imaginado pelos católicos. A riqueza, para aqueles protestantes, é sinal de predestinação. Quanto mais evidências de sucesso de sua vida na Terra — trabalho, família, estabilidade —, maior a demonstração de ter sido um "escolhido" de Deus. Então, faz sentido que eles busquem o máximo de riqueza que puderem no finito tempo que possuem nesta vida.
 
 

Norte e Sul
 
 

Com a falência política, moral e econômica dos principais países de economia planificada, há dez anos atrás, a divisão política do globo terrestre em três mundos ficou um pouco sem sentido. Atualmente divide-se o mundo em duas partes, Norte e Sul, que respectivamente correspondem aos países ricos, desenvolvidos e armados do Ocidente e ao países pobres, subdesenvolvidos e desarmados do antigo Terceiro Mundo. Vamos utilizar esta nova terminologia, porque ela dá conta satisfatoriamente do papel dos dois principais atores ("patrão" e "empregado") na atual divisão internacional do trabalho.

Nas conversas informais e na imprensa, o Norte é chamado ainda de Primeiro Mundo. Expressões como "isto é de Primeiro Mundo" ou "isto é muito diferente do que acontece no Primeiro Mundo" são correntes. Na linguagem coloquial, "Primeiro Mundo" virou um adjetivo que quer dizer "bonito", "que funciona", "como deveria ser", "moderno", "diferente do que nós fazemos", "ideal". Tente substituir a expressão "Primeiro Mundo" por qualquer uma dessas, quando ela for utilizada pela publicidade ou por locutores de rádio, e você verá que funciona.

Devemos lembrar também da falácia da globalização, que cria, perversamente, dois movimentos contraditórios: o desemprego nos países periféricos (comparativamente muito maior), trazendo o indesejável tempo livre (que em demasia afeta a sobrevivência…), e a liberação do cidadão do primeiro mundo para mais tempo de ócio e lazer. Lá, como as instituições são mais sólidas e a sociedade é mais permeável a mudanças conjunturais (pelo exercício da cidadania e pressão sobre as mesmas instituições), o trabalho humano necessário se reduz proporcionalmente à possibilidade tecnológica e à razão da possibilidade de emprego. Em outras palavras: isso se traduz em redução da jornada de trabalho e na criação de mecanismos institucionais, formais ou não, que catalizam essa necessidade. Por isso o trabalho braçal é pequeno, as empresas não demitem e fracionam o trabalho. O Estado, por sua vez (sob pressão da ameaça do desemprego e o desejo da manutenção do status da população), abraça um grande contingente populacional (funcionários públicos, ajudas sociais a desempregados, sistema previdenciário, créditos de apoio a novos negócios, incentivos à iniciativa individual, etc.).

O segundo movimento é a nova faceta da divisão internacional do trabalho, que centraliza o domínio tecnológico-científico, a concentração dos capitais e a administração global das empresas nos países desenvolvidos. Utilizando um termo já corrente, estes são os centros "neurais". Por outro lado, o trabalho de produção de recursos primários, ou industriais periféricos, das empresas multinacionais, que será praticamente todo (80%) consumido pelos países desenvolvidos, vai para os países que às vezes são, carinhosamente, chamados "em desenvolvimento". Estes são os centros "musculares".

Assim, o velho mapa-mundi, que sempre nos mostrou o norte acima do sul, finalmente traduz o mundo como um corpo dividido em cabeça e membros inferiores. Tal divisão, cujo similar mais próximo é a teologia política da idade média, que colocava o rei como a cabeça do Estado e o povo como os membros inferiores. Este tipo de pensamento ajuda a entender como a velha Europa dos direitos humanos e da igualdade do homem tornou-se a nova Europa da Otan.
 
 

Masculino/Feminino
 
 

Os que dizem que a escravidão acabou, e que agora não há mais uma situação como aquela da antiguidade, onde uns (os senhores) tinham o ócio através da opressão de outros (os escravos), devem refletir, caso sejam homens, sobre a diferença entre suas próprias tarefas diárias e as tarefas das suas esposas, irmãs, mães ou namoradas. Pois não é necessário ir além do próprio lar para se saber que, enquanto você, leitor do sexo masculino, está lendo este artigo, provavelmente sua mulher está lavando roupa, ou cuidando dos filhos, ou fazendo compras. É provável também que você, leitora do sexo feminino, só tenha começado a ler este artigo após ter feito todas as "suas" tarefas domésticas. Ou, talvez não possa lê-lo todo, pois tem que atender a um capricho do seu marido, e está é a "sua" obrigação.

O tempo livre do sexo masculino está baseado no trabalho gratuito do sexo feminino. Resta saber se vamos chamar ou não este trabalho gratuito de escravidão. Afinal, um escravo da Roma antiga era, até certo ponto, considerado membro da família, e os escravos negros dos Estados Unidos recebiam os sobrenomes dos seus donos.

O tempo livre do sexo masculino depende, também, da quantidade de trabalho doméstico. Neste caso a mulher — predominantemente, na nossa sociedade — confere ao homem a possibilidade de desfrutar de mais tempo livre, ao executar a grande maioria das tarefas domésticas. Neste caso o homem se livra de outras necessidades de sua existência para as quais gastaria inevitavelmente seu tempo, como aquisição de alimentos, preparo das refeições, higiene e limpeza doméstica, criação e educação da prole, etc. E mesmo também de tarefas que seriam irremediavelmente suas, se vivesse sozinho, como limpeza das próprias vestes, preparo das refeições e higienização da habitação.

Como os escravos negros dos EUA, as mulheres recebem o nome dos seus próprios "donos" e adquirem obrigações para com eles. É claro que essas "escravas modernas", se tiverem um pouco mais de dinheiro, podem colocar outras escravas para trabalhar para elas — estas então, teriam então duas famílias para cuidar — e desfrutar de mais tempo livre. Essas escravas libertas, que podem ter outras escravas, são chamadas na nossa civilização de "mulheres modernas". Podem desfrutar de mais tempo livre e usá-lo para si próprias.

Ora, nos países desenvolvidos, as "mulheres modernas" tiveram em grande parte que abdicar do direito de ter prole e casar tão cedo, para não sacrificar a liberdade, porque não podem pagar para ter uma outra escrava trabalhando para elas. Pois nesses países a mão-de-obra é cara, e os trabalhadores tem seus direitos respeitados. Os resultados disso, com a liberação e emancipação da mulher, são a competição com os homens no mercado de trabalho, a grande queda da taxa de natalidade, comparativamente com as últimas décadas — vale salientar que grande parte dos países europeus, como Alemanha, Itália, Espanha, Dinamarca, tem o crescimento vegetativo negativo (morrem mais pessoas do que nascem), de modo que alguns governos criaram políticas públicas com a finalidade de fomentar uma união estável e incentivar as famílias a terem filhos — e uma equalização (ainda em curso) da disponibilidade de tempo livre para os sexos.

Podemos dizer que uma mulher latino-americana teve o azar em nascer em uma sociedade machista, pois salvo ter sido bem casada — como um homem solvente —, quase que fatidicamente terá que dispender seu tempo livre para cuidar do lar e exercitar seu "dever" de mãe. Podemos incluir entre seus "deveres" a coordenação — mas não chefia — dos recursos humanos da casa, ou seja, dos filhos. Por outro lado, o homem latino-americano acha que a mulher tem muito "tempo livre" para cuidar dos filhos, da casa e fazer compras (só que não dá para entender porque ele não desfruta desse "privilégio" com sua mulher aos fins de semana). Portanto há também uma dificuldade de conceituação de tempo livre entre os sexos.

Falar em tempo livre leva imediatamente à pergunta: quem fará o que precisa ser feito enquanto você não faz nada? Nós, pensadores hipócritas, denunciamos a divisão internacional do trabalho, que oprime os países do Sul, mas esquecemos da divisão sexual do trabalho.

Vemos então que uma coisa simples, o lazer, implica já uma discussão sobre direitos e deveres, lei e moral. Todos os homens têm os mesmos direitos, mas as mulheres têm alguns deveres a mais. A lei garante a igualdade de todos, mas, na separação do casal, deixa o filho preferencialmente com a mãe, o que denuncia por si mesmo a desigualdade entre os sexos.

Porém, só quem pode falar da satisfação ou desgosto de ser tão diferentes são as próprias mulheres. Na própria dialética do senhor e do escravo este último reconhece a sua superioridade sobre o primeiro, pois aquele precisa dele para ter acesso aos alimentos e ao que precisa para sobreviver. Como no pensamento taoista, a força pode estar na fraqueza.
 
 

Tempo livre e desemprego
 
 

A idéia de desemprego só faz sentido no contexto atual de um mundo capitalista. O desemprego é consequência da liberdade individual e, no limite, só pode ser resolvido se o indivíduo renunciar à sua própria liberdade para poder sobreviver, como na dialética do senhor e do escravo, ou se o desemprego for visto, por outro lado, como uma nova situação como aquela que originou-se do desenvolvimento da pré-história, ou seja, como uma situação onde há pessoas que podem empregar seu tempo para atividades não diretamente ligadas à sobrevivência pura e simples.

Vamos analisar as consequências das duas opções-limite.

Na primeira opção, a tecnologia provoca o desemprego, pois cada vez se produz mais com menos mão-de-obra. Os indivíduos desempregados vêem a sua própria sobrevivência ameaçada, e abrem mão dos seus direitos para poderem sobreviver.

A consequência mais nociva é a criação de castas, como na antiguidade. Haveria aqueles que não tiveram que abrir mão de direito algum, e os outros que abrem mão de direitos, submetendo-se aos primeiros. Seria o mesmo que a volta da escravidão.

É evidente que não é isso que buscamos. A igualdade entre todos é um princípio fundamental não apenas na ética e moral, mas também no direito. Devemos prevenir este tipo de consequência. Esta prevenção seria, na verdade, uma pequena correção de curso, para adequarmos as nossas ações aos nossos ideais.

Esta é a segunda opção. Embora ela não esteja presente de fato, está presente no espírito de tudo o que construímos.

Na virada do último século, os trabalhadores do mundo todo começaram a organizar-se, afim de criar uma sociedade mais justa, onde cada um recebesse o que necessita para ser, realmente, um ser humano. Dizem que, numa reunião de trabalhadores anarquistas, estavam discutindo se iriam lutar por uma revolução que mudasse de uma vez toda a sociedade, ou se iriam lutar por pequenas vitórias que melhorassem a vida do trabalhador. A discussão era calorosa, e os trabalhadores mais jovens eram, em geral, favoráveis a uma luta pela mudança radical e violenta da sociedade. Então, um senhor pediu para falar, e a palavra lhe foi dada. Ele disse que estava velho, e que tinha trabalhado toda a vida, desde a infância, e que não desejava o mesmo para seus netos e bisnetos. Mas, ele acrescentou, achava que uma revolução era algo demorado e de resultados incertos, e ele gostaria, antes de morrer, de ter um tempo livre para poder ler livros e educar-se um pouco, já que não pôde fazer isso durante a juventude.

A visão moderada como a deste velhinho prevaleceu entre os trabalhadores, e eles lutaram para conseguir direitos como a aposentadoria por tempo de serviço, a jornada de trabalho de oito horas, as férias e o dia de descanso. E assim os trabalhadores ganharam seu tempo livre, para não fazer nada. "Por não fazer nada eu entendo não fazer nada de irrefletido ou de obrigatório, não fazer nada guiado pelo hábito ou pela preguiça. Por não fazer nada eu entendo fazer só o essencial, pensar, ler, ouvir música, fazer amor, passear, ir à piscina, colher cogumelos. Ao contrário do que se possa imaginar de maneira apressada, não fazer nada exige método e disciplina, abertura de espírito e concentração."
 
 

Educação
 
 

Porém, o tempo livre é gasto, por grande parte da população, assistindo a programas ignóbeis de televisão e ouvindo comentaristas cretinos das rádios.

Os meios de comunicação são utilizados instrumentalmente para ganhar dinheiro. A programação da televisão está sempre se acordando àquilo que o público quer ver. A exceção são os países comunistas, os países autoritários e as televisões educativas. Ainda que a televisão seja também um instrumento ideológico, em grande parte ela apenas está inserida na lógica do mercado. Em outras palavras, a televisão é estúpida porque o público é estúpido.

Se há programas piores, há também os melhores. Podemos sempre mudar de canal, ou escolher que filme veremos no cinema. Mas o público quer aquilo que está de acordo com o seu gosto. Mesmo que o gosto do público "melhore", o mercado continuará ganhando dinheiro com a programação. O mercado é muito versátil, e pode rapidamente responder às demandas, assimilar as novas tendências e torná-las mercadorias. A qualidade dos programas televisivos está ligada à qualidade do telespectador. Se o tempo livre, pelo qual tantas pessoas morreram lutando, tornou-se um meio de lucro, a culpa é das próprias pessoas que permitiram que aquilo que elas têm para sua própria ilustração seja instrumento da sua própria ignorância. No máximo, a culpa é do sistema de educação.

O governo e os organismos públicos devem incentivar a sociedade a utilizar melhor seu tempo livre em atividades que gerem conhecimento, que sejam criativas e intelectuais. Que o tempo livre seja utilizado para a arte, a música, a leitura e a cultura em geral, que dão prazer, integram, difundem conhecimento e também valorizam as melhores aspirações do ser humano e da nossa civilização. O tempo livre pode ser libertador nesse sentido, valorizando a nossa espécie, em oposição à estupidez e violência da atual "cultura" fácil televisiva, que incentiva à barbárie.
 

 Notas:

      Cesar Schirmer Bacharel em Filosofia pela UFRGS e professor do Centro de Ensino Médio FEEVALE. Atualmente faz mestrado na UFRGS.

     Jorge Alberto Machado é Sociólogo pela USP e doutor pela Universidade de Granada (Espanha).

Citacoes:

    Cabeza de Vaca. Naufrágios. Em Naufrágios e Comentários. Série Os Conquistadores. Porto Alegre, L&PM, 1987. Página 79.

    Max Weber. 1904-5. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1992. 7ª edição. Tradução de M. Irene de Q.  F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. Página 29.

    Jean-Philippe Toussaint. A televisão. São Paulo, Editora 34, 1999.