Considerações
sobre a Luta Abolicionista de Joaquim Nabuco
Jorge Machado
Universidade de São Paulo, 1994
Referência.:
Machado, Jorge (1994) Estudos JM, n.2 ano 3.
Disponível online:
http://each.usp.br/machado/soc/bibliot/machado/abolicionismo.htm
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"(...)
Não tenho, portanto, medo de que o presente volume que eu
espero por parte de um número bastante considerável de
compatriotas meus, a saber: os que sentem a dor do escravo
como se fora própria, e ainda mais, como parte de uma dor
maior - a do Brasil, ultrajado e humilhado; os que têm a
altivez de pensar - e a coragem de aceitar as consequências
desse pensamento - que a pátria, como a mãe, quando não existe
para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos;
aqueles para quem a escravidão, da degradação sistemática da
natureza humana por interesses mercenários e egoístas, se não
é infamante para o homem educado e feliz que a inflige, não
pode sê-lo para o ente desfigurado e oprimido que a sofre; por
fim os que conhecem as influências sobre o nosso país daquela
instituição no passado e no presente, o seu custo ruinoso, e
prevêem os efeitos de sua continuação indefinida(...)."
Joaquim Nabuco, O
Abolicionismo, 1883 (introdução).
Muito mais que
apenas uma luta humanista contra esse mal deplorável e
extremamente degradante que era a escravidão, o abolicionismo
significava uma luta contra o estado das coisas no Brasil. Contra
a situação de atraso em que o país era conduzido. Contra o legado
da escravidão, contra o próprio sistema em que ela se insere, que
conduzira o povo, segundo Nabuco, ao estado de indigência que se
encontrava, desprovido dos meios para uma existência digna,
colocado numa relação espoliativa com a grande propriedade.
Para Nabuco, o
Abolicionismo é um protesto à triste perspectiva de "entregar à
morte a solução de um problema, que não só é de justiça e
consciência moral, mas de previdência política"1 . Além disso,
acenta ele, o sistema já estava por demais estagnado para sofrer
por mais tempo a ação prolongada da escravidão. O movimento
abolicionista significa uma reação necessária e emergente. Ele
estava acima das filiações partidárias, e era um movimento que,
conforme afirma reunia liberais, conservadores e e republicanos
contra o mal da escravidão. Diz Nabuco quando da idéia da
criação do Partido Abolicionista: "a simples subordinação do
interesse de qualquer dos atuais partidos ao interesse da
emancipação, basta para mostrar que o partido abolicionista,
quando surgir há de satisfazer um ideal de pátria mais elevado,
compreensivo e humano, do que o de qualquer dos outros partidos
já formados, os quais são todos mais ou menos sustentados ou
bafejados pela Escravidão."2
O sentido da palavra
escravidão, é tomado em seu sentido lato. Em uma passagem
significativa em O Abolicionismo, afirma que a escravidão não
significa somente "a relação do escravo para com o senhor;
significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, a
clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no
interior; a dependência em que o comércio, a religião, a
pobreza, a indústria, o Parlamento, a Corôa e o Estado enfim, se
acham perante o poder agregado da minoria aristocrática, em
cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos, vivem
embrutecidos e moralmente mutilados pelo regime a que estão
sujeitos(...)."3
Afirma o mesmo que o
Abolicionismo é, antes de tudo, um movimento político para qual
"concorre o interesse dos escravos e a compaixão pela sua sorte,
mas que nasce de um pensamento diverso: o de construir o Brasil
sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade".4
Mas esse trabalho de
"construção", implica uma mudança em toda ordem social vigente,
pois não é uma mudança apenas efetivada des acordo aos anseios e
ideais humanistas ou, que apenas como resultado, pudesse afetar
tão somente mais ordenamento econômico, mas uma mudança que
atinge os próprios alicerces do nação, afetando todo ordenamento
social, uma mudança não apenas limitada a emancipação jurídica
do escravo, mas uma mudança no próprio sistema em que a
escravidão se insere.
A escravidão, segundo
Joaquim Nabuco, transportou da África para o Brasil cerca de
dois milhões de africanos, cujos descendentes formavam dois
terços da população5 . "O europeu, transportado para este mundo
virgem, procurou o braço do africano para tomar a posse da
território. Mas esse regime só pode ser mantido pela supressão
da natureza humana."6 "A escravidão manteve toda essa massa
pensante em estado puramente animal, não a alimentou, não a
vestiu suficientemente, roubou-lhe suas economias e nunca pagou
seus salários, deixou cobrir-se de doenças e morrer no
abandono(...)"7 . O resultado disso foi a aparição gradual de
uma população livre, mestiça8 que nada tinha como seu, sem
acesso a terra e a produção, vivendo em um estado lastimável de
miséria e dependência. Diria Joaquim Nabuco no seu discurso no
Teatro Santa Isabel durante a campanha abolicionista: "Eis a
escravidão agrícola e territorial. Mas como se vê, uma
instituição que possui o solo, o trabalho agrícola e a população
livre, o mal não podia circunscrever-se: a Escravidão de sistema
agrícola e territorial tornou-se um regime social e se estendeu
o seu domínio por toda a parte"9 .
A escravidão, segundo
Nabuco, "esterelizou o solo pela sua cultura extenuativa",
impediu o desenvolvimento dos municípios, criou feudos
senhorais, devastou regiões pela ordem institucional que a
suportava, suprimiu tudo aquilo que o homem livre reconhece.
"Seus efeitos foram: dependência, miséria, ignorância, sujeição
ao arbítrio dos potentados - para os quais o recrutamento foi o
principal meio de ação, a falta de um canto da terra que o pobre
pudesse chamar seu, ainda que por certo prazo, e cultivar como
próprio; de uma casa que fosse para ele um asilo inviolável e da
qual não o mandassem esbulhar à vontade; da família, respeitada
e protegida. Por último essa população foi por mais de três
séculos acostumada a considerar o trabalho do campo como próprio
de escravos (...)."10
Ao trabalhador livre
não havia trabalho nessa sociedade, a mão de obra escrava supria
o trabalho no campo. O trabalho no campo era digno apenas dos
escravos, nota Joaquim Nabuco, sendo esta uma terrível
influência da escravidão. O trabalhador livre era "um nômade, um
mendigo, e por parte alguma achava ocupação fixa"11 , isso
levava inevitavelmente a um estado de pauperização da população
livre, que conduzia a um estado intermediário entre o escravo e
o cidadão.
Essa mesma população
vivia "como ciganos", aderindo às terras das fazendas onde
achava agasalhos, formando pequenos núcleos nos interstícios das
propriedades agrícolas, edificando as sua quatro paredes de
barro onde lhe davam permissão para fazê-lo, mediante condições
de vassalagem que constituiam os moradores em servos da
gleba".12
A influência da
escravidão no território e população foi, para Joaquim Nabuco,
em todos os sentidos desastrosa. Os locais onde têm domínio são
insignificantes comparados com toda área do país desconhecida e
inexplorada. "O caráter de sua cultura é a improvidência, a
rotina, a indiferença pela máquina o mais incompleto desprezo
pelos interesses do futuro", a ânsia de tirar o maior lucro
imediato com o menor trabalho próprio possível. O monopólio do
trabalho conjugado com a apropriação feudal do solo, impediam a
formação de qualquer núcleo industrial. A extensão do comércio
encontrava muitas barreiras para sua expansão no interior. A
escravidão causava um prejuízo sistêmico de tal ordem que
impedia o desenvolvimento dos municípios. A exploração da terra
era dada sem atenção à localidade e ao povo que a circundava. O
dinheiro apenas financiava a compra de escravos e luxo das
cidades ao mesmo tempo que reduzia contingentes humanos a uma
existência degradante e penosa, e alijava milhões de qualquer
direito cidadão. Joaquim Nabuco, ao falar da Influência do
território sobre a população do interior, no cap. XIV do O
Abolicionismo, enfatiza muito bem o significado da escravidão
para país:
"(...) Em todos os
sentidos foi ela, e é, um obstáculo ao desenvolvimento material
dos municípios: explorou a terra sem atenção à localidade, sem
reconhecer deveres para com o povo de fora de suas porteiras;
queimou, plantou e abandonou; consumiu os lucros na compra de
escravos e no luxo das cidades; não edificou escolas, nem
igrejas, não edificou pontes, nem melhorou rios, não canalizou
as águas nem fundou asilos, não fez estradas, não construiu
casas, sequer para seus escravos, não fomentou nenhuma
indústria, não deu valor venal à terra, não fez benfeitorias,
não grangeou o solo, não empregou máquinas, não concorreu para
progresso algum na zona circunvizinha. O que fez foi esterilizar
o solo pela sua cultura extenuativa, embrutecer os escravos,
impedir o desenvolvimento dos municípios, e espalhar em tôrno
dos feudos senhorais o aspecto das regiões miasmáticas, ou
devastadas pelas instituições que suportou, aspecto que o homem
livre instintivamente reconhece(...)."13
A constatação da
vulnerabilidade da economia escravista e sua perniciosidade ao
desenvolvimento do país correspondeu à descoberta de que os
elementos sócio-culturais e o quadro institucional,
correlacionados à existência de uma camada proprietária de
terras e homens, tinham um sentido negativo para o próprio
estrato dominante, como bem acentua Paula Beiguelman14 . O
senhor e o escravo são objeto do sistema que o deforma a ambos -
embora complementarmente. O alvo dos abolicionistas não apenas
foi o status jurídico do escravo, mas também o sistema econômico
em que a escravidão se insere, e as sua implicações e
determinantes sociais.
De um modo geral, o
ponto de partida do pensamento abolicionista foi a descoberta de
uma duplicidade de sentido na organização política imperial.
Assim, nela se veriam negados os valores do liberalismo
político, uma vez que os partidos ascendiam não em função de uma
posição ideológica ou programática, mas sim por mercê da Câmara.
Por outro lado, foi esse mesmo quadro que permitira dissociar os
interesses de partido da sociedade agrária, tornando possível
estabelecimento de limites gradativos à escravidão.15
O caráter geral e
absoluto da categoria liberalismo político perdeu o seu sentido,
pois a realidade - e complexidade - do cenário político
brasileiro exigiam uma análise diferenciada, específica, em que
o viés ideológico não pode ser explicado pelo quadro partidário
- este um tanto vago e difuso, preso a interesses provinciais -
e pelo sistema político, mais sim pelo quadro institucional e a
dinâmica (ou inércia) social, configuradas pelo próprio legado
histórico e cultural. Assim é possível compreender o por quê de
um Partido Abolicionista e a dificuldade que Joaquim Nabuco
encontrava com a classe política brasileira, mas preocupada com
os interesses próprios e locais e divorciada da realidade
social.
A luta de Nabuco se
direcionou contra a dinâmica perversa do escravismo, contra o
caráter predatório da ocupação do solo, próprio da lavoura
tropical e, vinculando-se ao definhamento das regiões exploradas
pela escravidão, contra a deficiência causada pela exclusão do
homem da terra - não homem animal de carga, mas homem com
direitos enquanto tal, por antagonismo ao sistema escravocrata,
uma concepção integrada de trabalho / progresso / liberdade.
O problema do
subpovoamento do território conduzia à descoberta de uma
diferença entre a "iniciativa para migrar" e a "avidez para
estender-se": a existência de uma grande superfície incógnita no
Brasil, passa a interpretar-se em termos do caráter simplesmente
extensivo da lavoura tropical16 .
A ausência de vida
urbana fora das capitais provinciais é relacionada com o modo de
apropriação do solo, os latifúndios cultivados por escravos; o
isolamento, à incomunicabilidade impostos à grande propriedade,
a concentração feudal de poder, onde os agentes do pequeno
comércio são suspeitos ao senhor, e a correspondência de uma
centralização dos fornecimentos em algumas praças do país. Essa
marcha da lavoura tropical e urbana aponta esse paralelismo
rural-urbano que evidencia, por sua vez, a fatalidade do
desenvolvimento cíclico dos centros locais: ao citado
esgotamento do solo, ao abandono de uma população miserável,
desprovida dos elementares melhoramentos urbanos e situadas numa
condição de quase vassalagem.
O monopólio do solo,
elemento fundamental da economia imperial, explorado pela
aristocracia escravista, está intimamente ligado aos ideais da
luta do movimento liberal - sua contraposição. Este combatia nao
somente a situação deplorável e hedionda do escravismo e a essa
forma de uso e apropriação do solo, mas essa luta ia mais longe.
Ao movimento abolicionista estavam associadas as demandas que
viam a necessidade de transformações profundas no próprio
desenvolvimento econômico, com o incentivo ao elemento livre -
não se pode negar, pois, com todas as distorções do sistema
político brasileiro, que a substituição do trabalho forçado pelo
trabalho livre é um trunfo do liberalismo em voga na segunda
metade do século XIX -, a necessidade da imigração, a
valorização do trabalho na terra, o fomento à indústria, o
incentivo ao desenvolvimento do comércio, a necessidade de
urbanização, a melhoria das condições de vida da população.
Estes vetores de mudança, estavam portanto, relacionados além da
luta pela elevação do indivíduo, de seu estado de servil a
situação de homem livre e cidadão, como também à modernização da
sociedade.
Notas
1. Nabuco,
Joaquim, O abolicionismo, p. 6, São Paulo, Cia Editora Nacional,
1938.
2. Idem, p. 10.
3. Idem, pp. 6-7.
4. Idem, p. 19.
5. Idem, p. 85. Vale dizer que hoje se estima um número bem
maior de escravos (N. do A.).
6. Nabuco, Joaquim, Segunda Conferência no Teatro Santa Isabel,
Recife, 1o de novembro de 1884, in Discursos e Conferências
Abolicionistas, São Paulo, Ipê, 1949.
7. Nabuco, Joaquim, O Abolicionismo, op. cit., p.94.
8. No opúsculo O Erro do Imperador escreve Nabuco: "(...) o
nosso povo é isso mesmo, é um povo de pés no chão e manga de
camisa, e não é um povo branco." Num artigo no Jornal do
Comércio, 27 de abril de 1885, intitulado O sr. martinho de
Campos e os Abolicionistas: "Ou nús nunca seremos uma nação e
sim raças sobrepostas, como no sul dos estados Unidos, ou
seremos uma nação mestiça". Cit. in Beiguelman, Paula, Formação
Política do Brasil, 2a ed. rev., São Paulo, Pioneira, 1976,
p.179.
9. Nabuco, Joaquim, Segunda Conferencia no Teatro Santa Isabel,
op. cit.
10. Nabuco, Joaquim, O Abolicionista, op. cit., p. 161.
11. Idem, p. 162.
12. Idem, p. 162-163.
13. Idem, p. 161-162.
14. In Formação Política do Brasil, op. cit., p.176.
15. Beiguelman, Paula, Idem, p. 177.
16. Nabuco, Joaquim, O Abolicionismo, cit. in Beiguelman, Paula,
Formação Política do Brasil, op. cit., p. 178.
Bibliografia
Joaquim Nabuco
O Abolicionismo, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1938.
Beiguelman (org.), Paula
Joaquim Nabuco, Grandes Cientistas Sociais, , São Paulo, Ática,
1982.
Paula Beiguelman,
Formação Política do Brasil, 2a ed. rev., São Paulo, Pioneira,
1976