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porLuiz Menna-Barreto e Mario PedrazzoliresumoEsta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
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Sobre os autores
resumoLuiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais. -
Ordem e progresso, aceleração e alienação
porRafael H. SilveiraresumoComo diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira. -
Tempo e bem estar
porRobert LevineresumoNeste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”. -
A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde
porMario PedrazzoliresumoA mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas. -
Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura
porMuara Kizzy FigueiredoresumoEste trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos. -
Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos
porRafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi TrigoresumoEste artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais. -
Os tempos da vida
porLuiz Menna-BarretoresumoO tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas. -
Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa
porRafael H. SilveiraresumoEm Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.
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editorial
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sobre os autores
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Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação
Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação
porAlexandre Barbosa PereiraresumoO artigo aborda a configuração recente de um movimento musical, protagonizado principalmente por jovens de origem pobre, em São Paulo, o funk ostentação. A partir da pesquisa em casas noturnas e da observação de videoclipes na internet, explora-se a importância das referências a marcas de diferentes produtos e bens de valor elevado e a imagem como componente fundamental para a apresentação e divulgação desse estilo musical. Nesse circuito funk, a proposição de Arjun Appadurai sobre a centralidade do deslocamento pelas migrações e novas tecnologias da comunicação mostra-se como um caminho importante para se refletir sobre esse funk a partir da ideia de imaginação. -
Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo
Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo
porAntonio Eleison LeiteresumoA literatura da periferia de São Paulo se divide em dois períodos históricos: a) Literatura Marginal, de 2000 a 2005 e b) Literatura Periférica, a partir de 2005 até os dias atuais. A primeira fase teve como marco inaugural a publicação do livro Capão Pecado, de Ferréz, no ano 2000, obra muito influenciada pela cultura hip hop, especialmente o RAP. Este escritor foi o principal nome dessa fase, sendo também seu maior articulador, ao coordenar inúmeras coletâneas literárias que proporcionaram o surgimento de dezenas de autores. O segundo período é marcado pela ascensão dos saraus, principalmente do Sarau da Cooperifa. Este Coletivo publicou sua antologia em 2005 e estimulou diversos saraus a fazerem o mesmo. Viabilizados, em boa parte, por políticas públicas, perto de 200 livros, coletivos e individuais, foram lançados desde então, configurando um vigoroso movimento cultural. Entretanto, passados 12 anos, a rubrica periférica e/ou marginal se mostra insuficiente para identificar essa prática literária. Este artigo apresenta duas hipóteses para superação desse problema. A primeira é contextualizar a literatura periférica como uma dimensão da cultura popular urbana, ampliando assim o seu alcance como expressão cultural, sem prejuízo da sua identificação de origem. A segunda é de ordem estética e implica na afirmação da busca da qualidade como um imperativo da criação. Esse desafio, porém, requer, por parte dos escritores, uma disposição para se submeterem à crítica, ao mesmo tempo em que torna-se necessário um novo paradigma crítico que possa responder à especificidade dessa literatura. -
Estudios culturales en América Latina
Estudios culturales en América Latina
porEduardo RestreporesumoDuas grandes confusões parecem operar, com frequência, nos discursos em torno dos estudos culturais na América Latina. A primeira é a equivalência de estudos culturais e estudos sobre a cultura. A segunda, muito frequente no contexto estadunidense, é misturar sob o rótulo de estudos culturais a produção heterogênea de intelectuais latino-americanos que abordaram assuntos de cultura e poder e a de acadêmicos latino-americanistas das universidades do Norte. Neste artigo se evidenciam os problemas de ambas as confusões e se sublinham algumas de suas nefastas consequências para a articulação de um projeto intelectual e político de estudos culturais na América Latina. -
Valesca Popozuda: ministra da Educação
Valesca Popozuda: ministra da Educação
porAristóteles BerinoresumoOs chamados funks sensuais fazem parte da cultura juvenil da cidade do Rio de Janeiro. Valesca Popozuda é uma das suas principais estrelas, amplamente conhecida através das mídias. As vozes femininas do funk chamam atenção pelas letras que narram façanhas e fantasias que destoam da imagem que são destinadas ao sexo feminino. São vozes que que presentificam existências recalcadas pelo falocentrismo dominantes nas narrativas sobre o amor, o sexo e a vida na cidade. Seus aspectos políticos e culturais são agora estudados e debatidos. A política convencional também desperta para a cultura popular das periferias. O artigo lembra dois encontros ocorridos entre Lula e Valesca Popuzada, nos anos de 2008 e 2009. Oportunidade para a funkeira entregar ao então presidente uma letra de música que fala da favela, do funk, dos jovens e até da possibilidade de ser ministra da Educação. O artigo discute a intromissão das vozes femininas dos funks sensuais na vida das cidades como agenciamento politicamente significativo através das interpelações que produz. Na tradição dos estudos culturais, se propõe a problematizar o poder através também da criação popular no circuito da cidade. -
Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil
Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil
porRosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury ScalcoresumoNo início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada. -
Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar
Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar
porMaria Elena Infante-MalachiasresumoNeste ensaio apresentamos uma reflexão sobre a matriz biológico-cultural da existência humana a partir da epistemologia da Biologia do Conhecer, que considera o conhecimento a partir do sujeito que conhece. A matriz que constitui o cerne da Biologia Cultural corresponde à trama relacional onde o homem surge se realiza e conserva o seu viver humano. Nesta trama relacional que se inicia em um processo histórico que teve a sua origem há bilhões de anos, surgem todos os mundos que vivemos como as distintas dimensões do nosso viver cultural. Discutimos a relevância desta perspectiva, que considera ao mesmo tempo a constituição biológica e a cultura, para as relações humanas do ensinar e aprender e destacamos a possibilidade de transformação que surge ao considerar o outro como um legítimo outro na convivência. -
Ethnical Afro Tourism in Brazil
Ethnical Afro Tourism in Brazil
porLuiz Gonzaga Godoi Trigo e Alexandre Panosso NettoresumoO artigo desenvolve uma discussão teórica sobre o turismo étnico afro no Brasil. A temática somente recentemente tem merecido a devida atenção dos estudiosos, motivo pelo qual se justifica a abordagem. Os objetivos são três: 1) revisar a história das culturas afros no Brasil; 2) identificar as forças que garantem o respeito a essas identidades e; 3) analisar como os destinos afro devem ser trabalhados neste contexto. A metodologia empregada é a revisão teórica dos textos que abordam a cultura afro brasileira, tendo como pano de fundo da discussão os delineamentos dos estudos culturais. Conclui-se que o produto turístico com base na cultura afro é um produto viável no Brasil, porém deve primar pelos quesitos de respeito, alteridade, ética e valorização de todas as culturas envolvidas no processo. -
Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino
Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino
porVeronica Guridi e Valeria CazettaresumoNeste trabalho realizamos uma análise crítica com relação ao significado do conceito “alfabetização científica” dentro do campo da Educação em Ciências e em Geografia. Constatamos que o termo é ainda bastante polissêmico e que dependendo do enfoque adotado, se seguem diferentes implicações para o ensino de Ciências. Concluímos mostrando uma definição do termo que incorpora elementos dos recentes estudos na área bem como da vertente dos Estudos Culturais em Educação. -
A fome antropofágica - utopias e contradições
A fome antropofágica - utopias e contradições
porFernanda Oliveira Filgueiras Santos e Mauro de Mello LeonelresumoO Modernismo no Brasil significou um marco, que anunciou o fim de um período cultural caracterizado pelo legado e pelo conservadorismo. O Movimento Antropofágico foi a síntese artística e intelectual dessas reflexões. Este trabalho se propõe a discutir as contribuições e controvérsias deixadas pelo movimento no contexto de urbanização e cosmopolitismo em que ele emergiu na cidade de São Paulo. -
A versão encantada da pós-modernidade
A versão encantada da pós-modernidade
porMauro de Mello Leonel e Maira MesquitaresumoO livro em epígrafe tem como objetivo principal relatar com rigor cronológico as origens das versões de pós-modernidade ("não como idéia, mas como fenômeno"), remontando ao modernismo. Numa abordagem incomum o autor percorre, no tempo e nas circunstâncias, as dimensões estéticas, históricas e políticas da express -
Dossiê "Temporalidades"
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Editorial
Editorial
poros editoresresumoA Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves. -
Sobre os autores
Sobre os autores
resumoEduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira. -
Mídia: o Novo Totem Dessacralizado
Mídia: o Novo Totem Dessacralizado
porEduardo Wanderley Martins e Carlos VelázquezresumoO presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino. -
Literatura paraguay/guaraní - transversalidades
Literatura paraguay/guaraní - transversalidades
porDamián CabreraresumoPassando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada. -
O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir
O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir
porMadalena Pedroso Aulicino e Daniela MarcílioresumoO brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje. -
Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo
Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo
porAgnès García VenturaresumoSuele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo. -
A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil
A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil
porAndré VitorresumoCada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados. -
Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos
Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos
porMariana MoreiraresumoA presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde
Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos
Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura
Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
This paper analyzes the relationship between literature characters and environment and aim to investigate how supposedly occurred the deployment of European social rhythms in Brazil at nineteenth century, taking in consideration tropical environment temporal clues and the biological rhythms point of view. For this study, some literary texts of the period (especially the work of Machado de Assis and Eca de Queiroz) were analyzed - to identify references to sleep schedules, meals, social activities and aspects of sleep; well as reading contemporary authors who discuss the construction of national identities - especially in Brazil - and still; authors investigating the theme of time - either in chronological, psychological and biological terms.
1. Introdução
A carta de Pero Vaz de Caminha endereçada ao rei de Portugal quando do descobrimento do Brasil, em 1500, dá conta de inúmeras diferenças do modo de vida entre os nativos da terra e seus futuros colonizadores. Reconhecida como a primeira obra da literatura brasileira, a carta relata as diferenças na linguagem, no vestuário, na alimentação e na maneira de dormir percebidas pelos portugueses.
De acordo com o conhecimento moderno em Cronobiologia, a repetição e alternância de eventos na natureza de forma temporal organizada e cíclica contribuíram para que evoluíssem, nos seres vivos, mecanismos de resposta eficiente e antecipatória às mudanças do clima, das horas do dia e das estações do ano (PEDRAZZOLI, 2011). O organismo humano apresenta um “dia interior” de aproximadamente 25 horas que está adaptado à periodicidade fornecida pela oscilação claro/escuro dentro de um ciclo de aproximadamente 24 horas (o dia exterior). Isso pode ter influenciado a adaptação do europeu ao trópico, que é lenta e penosa, afetando atividades de subsistência e comerciais desenvolvidas em ambiente tropical. Um aspecto menos discutido da adaptação a esta nova terra é o padrão noite e dia: enquanto na Europa a duração do dia iluminado é muito variável ao longo do ano em função das estações, nesta região tropical os dias iluminados têm sempre a mesma duração o ano todo. O índio, ao contrário do português, está adaptado ao ciclo claro/escuro da zona tropical.
Segundo Norbert Elias, em estágios precoces da sociedade, fez-se sentir a necessidade de situar os acontecimentos e de avaliar a duração de alguns processos e, por isso adquiriu-se o hábito de escolher como norma para tal, processos físicos, limitando-se aos fenômenos naturais. Isso facilitou a adaptação humana ao ambiente, pois, em Cronobiologia, se reconhece a existência de estruturas geradoras de tempo no interior dos organismos (MARQUES; MENNA-BARRETO, 1997) que se submetem aos ciclos naturais e suas pistas, fornecidas pelo ambiente. Os fenômenos naturais exerceriam, então, a mesma função dos relógios – a de meios de orientação para homens inseridos numa sucessão de processos sociais e físicos (ELIAS, 1998). Esses padrões sociais sofrem intensas alterações a partir do século XVIII, momento em que as atividades humanas passam a ser reguladas de maneira diferenciada de acordo com a classe e função social do indivíduo dentro do processo industrial. O tempo sideral com um único passo abandonou o céu para entrar nos lares (THOMPSON, 1998): os horários de trabalho se expandem, tomando agora parte da noite. O desenvolvimento característico da era pós-industrialização é, ao mesmo tempo, a mudança de uma cultura: se antes a medição do tempo é relacionada com os fenômenos naturais ou aos processos familiares no ciclo do trabalho e das tarefas domésticas, os homens acostumados ao tempo marcado pelo relógio o encaram como um recurso econômico, não podendo, portanto, ser desperdiçado. O que se questiona é se a mudança cultural observada a partir do processo de industrialização – em total desacordo com os padrões biológicos construídos na espécie humana através de milhares de anos do processo evolutivo – pode ser assimilada com facilidade pelos organismos dos indivíduos submetidos a ele.
Apesar das tentativas de nos adequar a um padrão temporal baseado nas necessidades sociais, nosso organismo está biologicamente adaptado aos padrões temporais do nosso planeta. Localizações geográficas diferentes e suas peculiaridades geram estímulos diferenciados à fauna e flora locais – e o ser humano, como parte dessa fauna – também percebe e é influenciado por essa diversidade geográfica: clima, relevo, vegetação e o período de insolação de acordo com as estações do ano criam necessidades diferenciadas e, consequentemente, soluções diferentes.
2. As ideias da ciência
Mesmo que a nossa busca contemporânea pelo equilíbrio nos influencie a esperar que todos os aspectos da nossa existência sejam estáveis – buscamos a estabilidade financeira e psicológica, queremos um organismo que nos permita uma existência estável e plena de saúde – não obstante os ritmos[1] [1] De acordo com a definição dos professores Nelson Marques e Luiz Menna-Barreto, ritmo é um processo que varia periodicamente no tempo, a manifestação de um fenômeno que se repete com o mesmo período. , tais como períodos de sono e vigília ou oscilações de humor, são evidentes na maioria dos seres vivos. Isso porque, oscilações no ambiente podem servir como pistas temporais que facilitam a adaptação das espécies. Nesse caso, os indivíduos que melhor se adequarem ao novo cenário temporal, apresentam mais chances de permanência e reprodução; seja no sentindo mais amplo das relações do organismo com o ambiente, seja no sentido restrito das regulações de suas funções orgânicas (MARQUES; MENNA-BARRETO, 1997).
2.1 – Cronobiologia
A organização do nosso sistema solar aliada à inclinação do eixo da terra em relação ao plano do sol e o movimento de rotação da terra resulta nos ciclos dia e noite, nas estações do ano, nas fases da lua e na oscilação das marés. Observar, descrever e relacionar com fenômenos sociais os ciclos geofísicos, a repetição e a alternância dos eventos da natureza são atividades que estão na origem dos primeiros relatos da Cronobiologia – que estuda a temporalidade inerente à matéria viva – que, como conhecimento científico formalizado é extremamente jovem, pois data dos meados do século XX.
A repetição dos fenômenos num intervalo regular cria uma inevitável relação dos ritmos com os relógios, mesmo que a plasticidade característica dos sistemas vivos não esteja presente neles. Um exemplo claro dessa relação pode ser observada durante nosso período imperial, quando da inauguração de uma linha comercial marítima entre Liverpool e Rio de Janeiro (1850), que criou um parâmetro temporal fixo tão arraigado no imaginário popular que o ciclo menstrual de todas as mulheres do império e da república passa a ser associado à chegada das embarcações. Os packet boats (ou paquetes) tinham nomes femininos e, assim como a menstruação, tinham um ciclo de 27 ou 28 dias. O ritmo social observado – a chegada dos navios com uma periodicidade de aproximadamente um mês e a sua relação com o ritmo dado pelo ciclo menstrual feminino – criou forte associação no imaginário social do período e, até hoje, as pessoas usam a expressão “ela está de paquete” para se referirem a mulheres em período menstrual.
A analogia entre um sistema rítmico e o funcionamento de um relógio não é nova. Nesta analogia, distingue-se o relógio propriamente dito, responsável pela geração da periodicidade biológica, e a expressão aparente dos ritmos, que corresponderia aos “ponteiros” do relógio. [...] O conceito atual de relógio, implicando um sistema de temporização autossustentado continuamente oscilante, fundamenta-se na demonstração de estruturas anatomicamente definidas. [...] (MARQUES; MENNA-BARRETO, 1997)
Muitos ritmos biológicos estão associados ao ciclo geofísico claro/escuro (CE), dado pelo movimento de rotação da Terra. Esses ritmos – que variam de 20 a 28 horas – são chamados de ciclos circadianos e apresentam caráter endógeno; ou seja, o organismo apresenta um ritmo interno que é harmonizado com os ciclos ambientais, num processo denominado adaptação temporal. Nessa adaptação temporal, os ritmos fisiológicos característicos da espécie são expressos nos momentos mais propícios relativos ao ciclo ambiental por meio de processos denominados, em Cronobiologia, sincronização e arrastamento (ajuste temporal ao fator ambiental). O arrastamento e a sincronização só ocorrem quando há algum fator externo, denominado zeitgeber ou “doador de tempo”, por exemplo, ciclos geofísicos e ciclos de disponibilidade de alimentos ou aqueles determinados por uma organização social (MARQUES; MENNA-BARRETO, 1997). Ambientes localizados em diferentes latitudes (com insolação diferenciada durante as estações do ano) fornecem zeitgeber diferentes e, portanto, resultam em adaptações diferenciadas. A partir da compreensão dos conceitos de arrastamento e adaptação temporal, é possível perceber que as interações sociais e humanas podem ocorrer em horários diferentes ao redor do planeta, considerando a forma como a população de um determinado ambiente se adaptou aos sinais ambientais, permitindo o seguinte questionamento: estariam as temporalidades das atividades sociais humanas ancoradas também em fatores biológicos?
Essa investigação não é simples de ser realizada, pois, em muitas esferas acadêmicas, o social evolui dissociado dos limites biológicos de um organismo. Exemplo claro é a organização da produção de bens e serviços em grande escala, que surge ignorando os limites temporais impostos pelos ritmos biológicos e ciclos geofísicos.
3. As ideias fora de lugar[2] [2] Título inspirado no texto “As ideias fora de lugar” do livro Ao vencedor as batatas de Roberto Schwarz
Entre os séculos XVIII e XIX, um fluxo intenso de mudanças atingiu todos os níveis da experiência social, estimulado, sobretudo por um novo dinamismo na economia internacional. Essas mudanças irão afetar desde a ordem e as hierarquias sociais até as noções de tempo e espaço das pessoas, seus modos de perceber os objetos ao seu redor, de reagir aos estímulos luminosos (SEVCENKO, 1998), a maneira de organizar suas afeições e de sentir a proximidade ou alheamento de outros seres humanos. Nenhum período anterior teve tantas pessoas envolvidas de modo tão completo e rápido num processo de transformação de seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até mesmo de seus reflexos instintivos, não apenas no Brasil, mas no mundo tomado como um todo integrado (HOBSBAWM, 2001). Novas formas de encarar o conhecimento científico, além de estudos sobre a tropicalidade e suas influências negativas em todas as atividades humanas são abundantes nesse período de transição: a medida das horas e minutos da regularidade diurna dos trópicos parecia aleatória e desnecessária (ALENCASTRO, 1997) aos europeus. A transição entre o século XIX e XX (sobretudo a partir de 1850) e a Revolução Científico-Tecnológica representam mudanças mais abundantes, radicais e profundas, resultado da aplicação das descobertas científicas aos processos produtivos. Essas aplicações trazem, no curso de seus desdobramentos, veículos automotores, transatlânticos, aviões, telégrafos, telefones, iluminação elétrica, fotografia, cinema, radiodifusão, elevadores, escadas rolantes, sistemas metroviários, processos de pasteurização e esterilização, vasos sanitários com descarga automática e o papel higiênico, refrigerantes gasosos, fogão a gás, aquecedor elétrico, refrigerador, sorvetes, comidas enlatadas, aspirina, sonrisal e muitos outros. Esses avanços – principalmente nos meios de transporte e comunicação – são essenciais para compreender a influência da produção artística e do conhecimento científico europeu em terras brasileiras. A facilidade e a velocidade com que as informações conseguiam atravessar o Atlântico criou um parâmetro temporal entre o Brasil e a Europa inexistente até então. Esse processo age, principalmente no caso das funções superiores de coordenação social, nas quais a intersecção de um número cada vez maior de cadeias de interdependência incita os homens a submeterem sua atividade profissional a um horário cada vez mais exato (ELIAS, 1998). Muitos anos depois do descobrimento e da carta de Pero Vaz, no século XIX, relógios de algibeira (chamados de cebolões) passam a ser vendidos por mascates em todos os cantos do Império: o tempo da colônia pode ser marcado, de cebolão na mão em qualquer lugar. O tempo imperial é sincronizado ao tempo da modernidade europeia, apresentando uma nova conceituação para o tempo, que passa a ser valorizado como um recurso econômico. Inúmeras máximas populares sobre a sua preciosidade tornam-se poderosas influências culturais, exportadas para as antigas colônias europeias no continente americano através da produção artística e das trocas comerciais.
[...] A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais uma hora ou quase.
O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dois cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça, tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes.
— Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. (ASSIS, 1982)
As obras literárias nacionais do século XIX são, portanto, importante fonte de informação e comparação sobre o cotidiano do brasileiro: o passado se apresenta, dessa maneira, como uma forma de conhecer e entender melhor o momento presente (ORTIZ, 2012). Nesse contexto, a literatura do período assume o papel de poderosa ferramenta arqueológica, pois o cotidiano dos personagens numa obra literária nos fornece uma possível amostra da rotina social adotada no período, permitindo desvendar as funções de orientação e de regulação social do tempo (ELIAS, 1998) e, a partir disso, determinar como se dá a adaptação dos ritmos sociais e biológicos de um determinado grupo humano. Autores como Machado de Assis, que usam seus textos como uma ferramenta de crítica à sociedade que vivenciam, utilizam elementos do cotidiano dos leitores para transmitir veracidade aos seus escritos. O leitor contemporâneo vislumbra a sociedade do período, a sociedade do período se lê nas páginas do autor. Não por acaso, com o intuito de entreter a nascente burguesia urbana brasileira, textos literários de autores como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e Machado de Assis passam a ser lançados em jornais da época, em fascículos e, posteriormente compilados e lançados em forma de livro.
A literatura foi uma importante ferramenta na tentativa de produzir uma identidade cultural brasileira, mesmo que apresente a impropriedade da vida ideológica do Segundo Reinado (SCHWARZ, 2012): havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte da nossa identidade nacional[3] [3] Segundo Renato Ortiz, toda identidade é uma construção simbólica e se define em relação a algo que lhe é exterior. Se existe uma unidade em afirmar que o Brasil é “distinto” dos outros países, o consenso está longe de se estabelecer quando nos aproximamos do que viria a ser o nacional. Dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos. Dentro deste contexto, a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima. Colocar a problemática dessa forma é, portanto, dizer que existe uma história da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relação com o Estado. , mesmo que esse conjunto ideológico seja incompatível com a escravidão e seus defensores (SCHWARZ, 2012), opondo o trabalho livre e o trabalho escravo, bem como as consequências (sociais e econômicas) de cada um desses modos de trabalho. Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais (SCHWARZ, 2012). Trazer de países distantes as nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo[4] [4] Sérgio Buarque de Holanda apud SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2012. torna o brasileiro um desterrado em sua própria terra, por maior que seja o esforço em manter tudo isso em ambiente – muitas vezes desfavorável e hostil.[5] [5] Sérgio Buarque de Holanda apud SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2012.
Algo diferente se apresenta no que se refere às escolhas dos horários para a realização das atividades sociais. Por mais que hábitos europeus sejam gradualmente introduzidos na sociedade brasileira a partir do século XVI, as atividades sociais parecem adotar, no século XIX, o fator biológico como elemento determinante na escolha dos horários para sua realização. Machado de Assis, em seus textos, costuma relatar horários de refeição (almoço e jantar) muito adiantados em relação à contemporaneidade – muitos jantares, tal como o jantar de comemoração à queda de Napoleão, dado pelo pai de Brás Cubas – ocorrem num horário com muita iluminação natural disponível (nesse episódio, o garoto Brás Cubas sai, após o jantar, para um passeio pela chácara e testemunha um beijo entre dois convidados. A iluminação é dada apenas pelo sol). Machado mostra personagens extremamente matutinos, para quem o nascer do Sol é o momento adequado para despertar, mesmo sem relatos de compromissos sociais como trabalho ou estudo – esse é o caso de Estácio que, no romance Helena, é um jovem de vinte e sete anos que não estuda ou trabalha, mas acorda diariamente ao nascer do Sol, almoça por volta das dez da manhã e realiza poucas atividades noturnas. Uma dessas atividades noturnas – uma festa em homenagem ao seu aniversário – terminou bem antes da meia-noite. Os personagens com hábitos vespertinos existem na obra machadiana, mas são apresentados de forma a serem julgados negativamente pelo leitor – é o caso de Luis Soares, Estevão e Brás Cubas: o primeiro troca o dia pela noite, o segundo e o terceiro frequentam “ceias de moças”, bailes e saraus noturnos, são sujeitos fracos e de moral condenável; todos têm suas falhas de caráter amplamente discutidas durante o desenrolar do enredo. Contos que ocorrem no período noturno – tais como Missa do Galo – se passam em meio a uma aura de segredo e sensualidade. Em resumo, a obra de Machado atesta a normalidade em termos de horário durante o século XIX: indivíduos matutinos e bem sucedidos, prontos a condenar indivíduos vespertinos e falhos.
Até que ponto essa característica matutina presente na obra de Machado de Assis aparece em autores europeus? Em texto também memorialista escrito na mesma época em que Machado escreveu e publicou seus textos (final do XIX), Eça de Queirós nos apresenta horários de refeições mais vespertinos (e próximos da nossa prática atual): Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, em sua última visita ao pai observa que os jantares na casa de Afonso ocorrem ainda muito cedo – por volta das sete da noite. A família de Afonso Maia é, mais tarde, submetida a horários muito matutinos – e por isso parecido com os horários descritos na obra machadiana. Nessa passagem, Eça enfatiza a diferença dos horários da família Maia com os praticados pelos demais personagens da obra. Esses resultados levam aos seguintes questionamentos: houve de fato uma tentativa de impor os horários europeus no Brasil? Os horários sociais europeus foram implantados no Brasil durante o século XIX?
4. Os horários fora de lugar?
A imprensa e a literatura tiveram papel essencial no processo de transformação da sociedade senhorial carioca: a intenção era substituir a sociedade da época por uma mais compatível com os ideais de uma elite urbana, burguesa individualista e cosmopolita, equiparando culturalmente o Brasil à Europa. Essa aproximação era também de interesse da elite econômica, cujo desejo de modernidade, orientado pela crença no progresso e na tecnologia, planejava transformar a capital numa Paris dos trópicos (FEIJÃO, 2011). Os hábitos da burguesia europeia, sobretudo a burguesia francesa, determinaram em grande parte o comportamento das classes burguesas brasileiras, sobretudo a carioca. Ficam evidenciados, portanto, as inúmeras iniciativas de recriar hábitos europeus no Brasil, mas questiona-se, a partir de análise de textos literários do período, até que ponto essas iniciativas esbarraram nos limites impostos pelos ritmos biológicos humanos. Nesse sentido, os mesmos aparatos tecnológicos criados no continente europeu são implantados em território brasileiro, gerando o mesmo tipo de ruído temporal nos dois ambientes: a aproximação da sociedade carioca aos costumes e hábitos europeus aumentou após 1850, já que essa década marca a concretização prática de três iniciativas que visam o progresso urbano da capital: a iluminação a gás, o uso do telégrafo elétrico e a primeira locomotiva (que vai de Porto da Estrela até a raiz da serra de Petrópolis). A iluminação a gás está associada a uma série de mudanças sociais – tanto no que se refere ao público quanto ao privado. Não só a forma como a cidade é visualizada se transforma, mas, principalmente, as relações humanas e a ampliação dos horários em que essas relações podem ser travadas. Delso Renault, em suas pesquisas em jornais e revistas do período, destaca a polêmica implantação da iluminação a gás:
O Rio já conta com 1.361 lampiões a gás [em 1854]. Ilumina-se o Passeio público, cujas luzes, coando-se entre as árvores copadas e refletindo-se no mar, oferecem espetáculo admirável. Certos jornais criticam a excessiva iluminação da cidade e, ao mesmo tempo, condenam o custo excessivo de sua manutenção. (RENAULT, 1978)
Nesta época novos costumes são introduzidos na sociedade carioca, tais como saraus, bailes, jogos, teatro, dança, caçada e equitação pelas matas que circundam a cidade, a exemplo do que já ocorre na Europa. O transporte e a equitação vão tornando conhecidos os arredores do Rio de Janeiro, possibilitando a instalação de famílias de posse em locais como Botafogo, Santa Teresa, Rio Comprido, Matacavalos, Andaraí, São Cristóvão e outras localidades. O mobiliário e a alimentação são largamente influenciados pelos costumes europeus e é possível que o relógio despertador (uma invenção americana) tenha sido introduzido nos hábitos do fluminense entre 1865 e 1870. Apesar disso, muitos textos machadianos consideram o nascer do sol como horário apropriado para despertar, independente da existência de mediadores do tempo, como relógios. A indústria estrangeira propicia conforto e leva utilidades práticas às residências. Mesmo assim, os horários da sociedade europeia – continente urbano e fabril – baseados no tempo de trabalho (WILLIAMS, 2011), estão em total desacordo com as pistas temporais cariocas e, ao menos na obra machadiana, não servem como parâmetro temporal para realização das atividades sociais.
5. Conclusão
Nesse estudo, o texto machadiano foi analisado a procura da descrição dos horários sociais dos personagens – horários em que costumam acordar, dormir, que se alimentam e interagem entre si. Para Chartier (2010), o romance no século XIX se apodera do passado, tornando possível produzir, moldar e organizar a experiência coletiva mental e física, o que nos permite analisar os resultados obtidos como uma possível amostra da população carioca do período e demonstra que os personagens realizam suas atividades muito mais cedo do que pode ser observado atualmente – o sol é apresentado em muitos textos como mediador do tempo social, fato que não ocorre nos textos de Eça de Queirós analisados para esse trabalho. A literatura foi usada aqui como ferramenta na reconstrução e reprodução de costumes e práticas sociais do século XIX e os horários praticados pelos personagens machadianos se assemelham aos de indivíduos que, atualmente, vivem em ambientes com pouca ou nenhuma oferta de iluminação artificial (a gás ou elétrica). Os almoços descritos pelo autor ocorrem sempre no período da manhã, e as tardes, após o jantar, são aproveitadas ao ar livre, sob a luz natural fornecida pelo sol. Por volta das seis da noite as famílias costumavam se reunir para conversar ou ler – nesse horário, os lampiões da casa são acesos, tal como relato de Bentinho, em Dom Casmurro. Já os jantares em Eça de Queirós costumam ocorrer entre seis e sete da noite, já com os lampiões acesos, nos levando a uma série de indagações a respeito da forma como se repetem as práticas sociais europeias em território brasileiro.
O que se questiona no presente estudo é se as práticas sociais europeias são reproduzidas no Brasil nos mesmos horários em que por lá são realizados, já que o conhecimento estabelecido na Cronobiologia considera que os organismos praticam horários atrelados ao ambiente, ou seja, ao ciclo claro/escuro fornecido pela natureza. A construção de uma identidade brasileira passa, também, pelo estabelecimento de horários sociais que, ao menos nos textos machadianos, são resultado da interação entre a população brasileira e o ambiente em que vive independente das relações de poder ou da influência existentes entre o Brasil e a Europa. Em síntese, as ideias europeias que a elite brasileira tenta implantar no Brasil do século XIX podem estar fora de lugar, como observa Schwarz, mas os horários praticados aqui não.
notas de rodapé
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