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  • Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.

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  • editorial
  • sobre os autores
  • Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação

    Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação

    por 
    Alexandre Barbosa Pereira
    resumo 
    O artigo aborda a configuração recente de um movimento musical, protagonizado principalmente por jovens de origem pobre, em São Paulo, o funk ostentação. A partir da pesquisa em casas noturnas e da observação de videoclipes na internet, explora-se a importância das referências a marcas de diferentes produtos e bens de valor elevado e a imagem como componente fundamental para a apresentação e divulgação desse estilo musical. Nesse circuito funk, a proposição de Arjun Appadurai sobre a centralidade do deslocamento pelas migrações e novas tecnologias da comunicação mostra-se como um caminho importante para se refletir sobre esse funk a partir da ideia de imaginação.
  • Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo

    Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo

    por 
    Antonio Eleison Leite
    resumo 
    A literatura da periferia de São Paulo se divide em dois períodos históricos: a) Literatura Marginal, de 2000 a 2005 e b) Literatura Periférica, a partir de 2005 até os dias atuais. A primeira fase teve como marco inaugural a publicação do livro Capão Pecado, de Ferréz, no ano 2000, obra muito influenciada pela cultura hip hop, especialmente o RAP. Este escritor foi o principal nome dessa fase, sendo também seu maior articulador, ao coordenar inúmeras coletâneas literárias que proporcionaram o surgimento de dezenas de autores. O segundo período é marcado pela ascensão dos saraus, principalmente do Sarau da Cooperifa. Este Coletivo publicou sua antologia em 2005 e estimulou diversos saraus a fazerem o mesmo. Viabilizados, em boa parte, por políticas públicas, perto de 200 livros, coletivos e individuais, foram lançados desde então, configurando um vigoroso movimento cultural. Entretanto, passados 12 anos, a rubrica periférica e/ou marginal se mostra insuficiente para identificar essa prática literária. Este artigo apresenta duas hipóteses para superação desse problema. A primeira é contextualizar a literatura periférica como uma dimensão da cultura popular urbana, ampliando assim o seu alcance como expressão cultural, sem prejuízo da sua identificação de origem. A segunda é de ordem estética e implica na afirmação da busca da qualidade como um imperativo da criação. Esse desafio, porém, requer, por parte dos escritores, uma disposição para se submeterem à crítica, ao mesmo tempo em que torna-se necessário um novo paradigma crítico que possa responder à especificidade dessa literatura.
  • Estudios culturales en América Latina

    Estudios culturales en América Latina

    por 
    Eduardo Restrepo
    resumo 
    Duas grandes confusões parecem operar, com frequência, nos discursos em torno dos estudos culturais na América Latina. A primeira é a equivalência de estudos culturais e estudos sobre a cultura. A segunda, muito frequente no contexto estadunidense, é misturar sob o rótulo de estudos culturais a produção heterogênea de intelectuais latino-americanos que abordaram assuntos de cultura e poder e a de acadêmicos latino-americanistas das universidades do Norte. Neste artigo se evidenciam os problemas de ambas as confusões e se sublinham algumas de suas nefastas consequências para a articulação de um projeto intelectual e político de estudos culturais na América Latina.
  • Valesca Popozuda: ministra da Educação

    Valesca Popozuda: ministra da Educação

    por 
    Aristóteles Berino
    resumo 
    Os chamados funks sensuais fazem parte da cultura juvenil da cidade do Rio de Janeiro. Valesca Popozuda é uma das suas principais estrelas, amplamente conhecida através das mídias. As vozes femininas do funk chamam atenção pelas letras que narram façanhas e fantasias que destoam da imagem que são destinadas ao sexo feminino. São vozes que que presentificam existências recalcadas pelo falocentrismo dominantes nas narrativas sobre o amor, o sexo e a vida na cidade. Seus aspectos políticos e culturais são agora estudados e debatidos. A política convencional também desperta para a cultura popular das periferias. O artigo lembra dois encontros ocorridos entre Lula e Valesca Popuzada, nos anos de 2008 e 2009. Oportunidade para a funkeira entregar ao então presidente uma letra de música que fala da favela, do funk, dos jovens e até da possibilidade de ser ministra da Educação. O artigo discute a intromissão das vozes femininas dos funks sensuais na vida das cidades como agenciamento politicamente significativo através das interpelações que produz. Na tradição dos estudos culturais, se propõe a problematizar o poder através também da criação popular no circuito da cidade.
  • Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

    Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

    por 
    Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
    resumo 
    No início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada.
  • Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar

    Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar

    por 
    Maria Elena Infante-Malachias
    resumo 
    Neste ensaio apresentamos uma reflexão sobre a matriz biológico-cultural da existência humana a partir da epistemologia da Biologia do Conhecer, que considera o conhecimento a partir do sujeito que conhece. A matriz que constitui o cerne da Biologia Cultural corresponde à trama relacional onde o homem surge se realiza e conserva o seu viver humano. Nesta trama relacional que se inicia em um processo histórico que teve a sua origem há bilhões de anos, surgem todos os mundos que vivemos como as distintas dimensões do nosso viver cultural. Discutimos a relevância desta perspectiva, que considera ao mesmo tempo a constituição biológica e a cultura, para as relações humanas do ensinar e aprender e destacamos a possibilidade de transformação que surge ao considerar o outro como um legítimo outro na convivência.
  • Ethnical Afro Tourism in Brazil

    Ethnical Afro Tourism in Brazil

    por 
    Luiz Gonzaga Godoi Trigo e Alexandre Panosso Netto
    resumo 
    O artigo desenvolve uma discussão teórica sobre o turismo étnico afro no Brasil. A temática somente recentemente tem merecido a devida atenção dos estudiosos, motivo pelo qual se justifica a abordagem. Os objetivos são três: 1) revisar a história das culturas afros no Brasil; 2) identificar as forças que garantem o respeito a essas identidades e; 3) analisar como os destinos afro devem ser trabalhados neste contexto. A metodologia empregada é a revisão teórica dos textos que abordam a cultura afro brasileira, tendo como pano de fundo da discussão os delineamentos dos estudos culturais. Conclui-se que o produto turístico com base na cultura afro é um produto viável no Brasil, porém deve primar pelos quesitos de respeito, alteridade, ética e valorização de todas as culturas envolvidas no processo.
  • Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino

    Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino

    por 
    Veronica Guridi e Valeria Cazetta
    resumo 
    Neste trabalho realizamos uma análise crítica com relação ao significado do conceito “alfabetização científica” dentro do campo da Educação em Ciências e em Geografia. Constatamos que o termo é ainda bastante polissêmico e que dependendo do enfoque adotado, se seguem diferentes implicações para o ensino de Ciências. Concluímos mostrando uma definição do termo que incorpora elementos dos recentes estudos na área bem como da vertente dos Estudos Culturais em Educação.
  • A fome antropofágica - utopias e contradições

    A fome antropofágica - utopias e contradições

    por 
    Fernanda Oliveira Filgueiras Santos e Mauro de Mello Leonel
    resumo 
    O Modernismo no Brasil significou um marco, que anunciou o fim de um período cultural caracterizado pelo legado e pelo conservadorismo. O Movimento Antropofágico foi a síntese artística e intelectual dessas reflexões. Este trabalho se propõe a discutir as contribuições e controvérsias deixadas pelo movimento no contexto de urbanização e cosmopolitismo em que ele emergiu na cidade de São Paulo.
    palavras-chave 
  • A versão encantada da pós-modernidade

    A versão encantada da pós-modernidade

    por 
    Mauro de Mello Leonel e Maira Mesquita
    resumo 
    O livro em epígrafe tem como objetivo principal relatar com rigor cronológico as origens das versões de pós-modernidade ("não como idéia, mas como fenômeno"), remontando ao modernismo. Numa abordagem incomum o autor percorre, no tempo e nas circunstâncias, as dimensões estéticas, históricas e políticas da express
  • Dossiê "Temporalidades"

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  • Editorial

    Editorial

    por 
    os editores
    resumo 
    A Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Eduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira.
  • Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    por 
    Eduardo Wanderley Martins e Carlos Velázquez
    resumo 
    O presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino.
    palavras-chave 
  • Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    por 
    Damián Cabrera
    resumo 
    Passando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada.
    palavras-chave 
  • O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    por 
    Madalena Pedroso Aulicino e Daniela Marcílio
    resumo 
    O brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje.
    palavras-chave 
  • Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    por 
    Agnès García Ventura
    resumo 
    Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
  • A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    por 
    André Vitor
    resumo 
    Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.
    palavras-chave 
  • Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    por 
    Mariana Moreira
    resumo 
    A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
    palavras-chave 
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Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

por 
Muara Kizzy Figueiredo
resumo 
Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
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Os tempos da vida

por 
Luiz Menna-Barreto
resumo 
O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
 
dossiê temporalidades

Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

por 
Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
resumo 

Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.

 
Slow movement: reaction to the contrast between social and biological rhyhms
abstract 

This article discusses the mismatch between biological rhythms and social rhythms emerging since the Industrial Revolution. In this way, it presents evidences of rhythmic changes in recent decades, developing a continuous and profound process of sociocultural acceleration and mechanization, predominant in capitalist system. Then, it discusses the relationship between biological rhythms and social rhythms, with the acquired conceptual contribution of chronobiology. Finally, shows the emergence and consolidation of the Slow Movement in recent decades, becoming a sign of temporal dislocation experienced today.

 

Introdução

Um dos traços mais marcantes da sociedade contemporânea é o culto à velocidade. A glamorização da rapidez pode ser encarada como reflexo direto dos ainda predominantes valores industriais que por mais de duzentos anos têm influenciado de modo determinante o comportamento civilizatório, especialmente nas estruturas societárias capitalistas do Ocidente. A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVII e disseminada entre as nações capitalistas ocidentais nas décadas seguintes, estabeleceu uma série de valores-base à sociedade: padronização, massificação, mecanização, mercantilização e, certamente, a aceleração.

Diante disso, o estilo de vida das sociedades industriais se alterou de modo profundo e decisivo, criando uma nova perspectiva espacial e temporal para o homem. A modificação dos espaços e suas respectivas interpretações e utilizações tem como seu legado mais notório o processo contínuo de urbanização. Contudo, a mudança gradativa do homem do ambiente rural para as cidades também alterou para sempre a forma de lidar com o tempo. O relógio e sua precisão mecânica tornaram-se símbolo das fábricas e da urbe, estabelecendo uma artificialização dos ritmos sociais, gradativamente em descompasso com os ritmos biológicos humanos.

Os reflexos deste fenômeno podem ser observados em larga escala nos dias atuais: depressão e ansiedade como doenças crônicas e amplamente disseminadas; ascensão e consolidação do lazer e do turismo modernos, utilizados primordialmente como válvulas de escape em relação às agruras do cotidiano; entre outras consequências.

Não é à toa que áreas de estudo como a Cronobiologia emergiram nas últimas décadas, tentando desvendar as particularidades dos ritmos biológicos e relacioná-las às temporalidades predominantes nos dias atuais. Também é sintomático o surgimento de movimentos contestatórios à lógica do sistema capitalista industrial vigente, inclusive no que tange ao aproveitamento temporal da humanidade. Entre suas expressões mais simbólicas está o Slow Movement, filosofia de alcance global baseada no contraponto à aceleração desmedida da sociedade e que vem encontrando ecos nos mais diversos campos socioculturais, como a alimentação, a urbanização e as viagens.

Diante deste contexto pretendemos contextualizar o Slow Movement como um importante sintoma de reação cultural aos descompassos biológicos e sociais existentes na atualidade. Nesse sentido discutiremos as mudanças temporais decorrentes do processo de industrialização, apresentaremos alguns conceitos básicos da Cronobiologia e sua relação com o desalinho entre os ritmos sociais e biológicos e por fim examinaremos o Slow Movement como movimento contestatório aos valores industriais de artificialização do tempo.

Para tal, o artigo pauta-se em pesquisa bibliográfica e documental que discutem temas como: sociedade industrial moderna, aceleração e mecanização, Cronobiologia, movimentos contestatórios contemporâneos e Slow Movement. Para este último subtema, devido à contemporaneidade do assunto e a restrição de referências publicadas, utilizamos como suporte, além de livros e artigos científicos, informações disponíveis eletronicamente advindas especialmente de entidades representativas do movimento e de seus desdobramentos.

Com isso, pretendemos demonstrar que os Estudos Culturais, em sua proposta inter e transdisciplinar, apresentam concretas possibilidades de diálogo com as diversas áreas do conhecimento, sendo notadamente, no caso deste artigo, destacada sua relação com os estudos da biologia humana vinculados ao tempo.

Sociedade Industrial Moderna: aceleração e mecanização do mundo

Um dos autores de maior reconhecimento analítico sobre as mudanças civilizatórias é Alvin Toffler[1] [1] É importante salientar que as obras de Alvin Toffler foram decisivas em termos descrição de cenários e possibilidades para as sociedades que, poucas décadas depois do final da II Guerra Mundial, vislumbravam recursos e desafios inéditos. Graças aos avanços da eletrônica que se refletia na gestão informatizada de negócios, bancos de dados “inteligentes”, telecomunicações e capacidade produtiva industrial baseada em alta tecnologia de informática e robótica, o mundo adquiria configurações econômicas, sociais, políticas e culturais bastante singulares. Seus livros pontuaram essas transformações. Em 1970 ele publicou O choque do futuro; em 1980 A Terceira Onda; e em 1990 Powershift – conhecimento, riqueza e violência no início do século XXI. Contemporâneos de Toffler e igualmente respeitados pelo mundo financeiro e corporativo internacional, John Naisbitt e Patricia Aburdene publicaram, em 1990 Megatrends 2000. Esses autores foram os últimos analistas internacionais liberais significativos a fazer análise e prospecção de cenários para o mundo que se transformava rapidamente. Na transição do século XX para o século XXI as incertezas, tecnologias disruptivas e novos métodos de violência global (terrorismo, guerras preventivas, crescimento de ódios étnicos e religiosos, máfias globais, incremento do narcotráfico) inviabilizaram as grandes narrativas e os leques de probabilidades abrangentes sobre o futuro próximo das sociedades e dos mercados. Mas até então era possível traçar grandes tendências. Foi justamente o que Toffler tentou e, em larga medida, sendo bem sucedido nas análises. . Em 1980 ele comparou as grandes revoluções do pensamento humano ao conceito físico de ondas, que se propagam e tomam conta do ambiente no qual se expressam. Desta forma estabelece a Revolução Agrícola, iniciada há aproximadamente 10 mil anos, como parâmetro de estruturação social predominante até a Revolução Industrial, com influência determinante na dinâmica espaço-temporal humana.

Em cada etapa de colossal transformação sociocultural, Ribeiro (1998) destaca o salto populacional vertiginoso observado para cada um dos períodos. Durante a Revolução Agrícola, por exemplo, estima-se que a humanidade tenha crescido de modo exponencial, saltando de um contingente de 20 milhões de pessoas para 650 milhões em todo o planeta. Já na Era Industrial, o mesmo autor projeta que a população europeia teria aumentado 150% apenas durante o século XIX e que em um intervalo de dois séculos, a população da terra teria saltado de 650 milhões de habitantes em 1750 para 2,4 bilhões em 1950. Por fim, a terceira grande onda, denominada Revolução Termonuclear por Ribeiro (1998), estaria em curso, simbolizada pela globalização civilizatória, levando a um novo salto populacional, representado por aproximadamente 6 bilhões de humanos no ano 2000 (e com a projeção de 9 bilhões para 2050). A velocidade de crescimento populacional, portanto, demanda um aprimoramento tecnológico capaz de equacionar as limitações dos recursos naturais disponíveis, ainda mais em um modelo vigente extremamente voltado ao consumo.

Em todas essas ocasiões, portanto, o fator primordial para a expansão contundente da população humana foi a drástica mudança ideológica, pautada no domínio e controle da natureza, através de mecanismos mais sofisticados de aplicação do conhecimento à mercê humana: a tecnologia.

Contudo, um fator dissonante entre os períodos citados, é a distinta apropriação espacial e temporal desenvolvida pelo homem em cada um deles. Se no primeiro período prevalece uma maior dependência em relação a fatores naturais, tal qual o clima e o ciclo circadiano, a partir da Revolução Industrial, com a disseminação de valores ditos modernos, o homem distanciou-se de modo definitivo da natureza, passando a subjugá-la em prol de um desenvolvimento racional e utilitarista. Tal mentalidade vem predominando ao longo de quase três séculos no Ocidente, com causas e consequências determinantes para o atual estágio de desequilíbrio entre as relações biológicas e culturais. Não é à toa que na terceira grande onda, ainda em curso, parte da humanidade coloque em xeque a relação estabelecida homem/natureza, diante principalmente do descompasso espacial e temporal predominantes, os quais têm influenciado, muitas vezes negativamente, as relações políticas, econômicas e socioculturais contemporâneas.

Todavia, para compreender melhor essa trajetória pendular de aproximação e afastamento em relação à natureza, é preciso inicialmente discutir o conceito de modernidade e os valores a ele associados. Isto porque, a partir de sua consolidação, o homem dá um passo definitivo de menosprezo em relação às leis e princípios da natureza e do instinto, os quais já vinham sendo condenados como atrasos e vícios pelos dogmas da Igreja Cristã no Ocidente. O antropocentrismo renascentista/iluminista apenas colocou o homem em outro patamar, divinizando-o, conforme indica Habermas (2001 apud BEZERRA, 2007, p.181):

Esta crença na autoridade da razão está na base do Projeto Iluminista ou do Esclarecimento. Um movimento intelectual, filosófico, político, ideológico e cultural deflagrado no século XVIII, cujas premissas contribuíram para construção das grandes utopias emancipatórias modernas e que estiveram no centro das revoluções sociais e políticas desde os séculos XVIII e XIX, até o século passado, quer as de tradição liberal, quer as de tradição socialista. Sua proposição fundamental é aquela que articula RAZÃO e EMANCIPAÇÃO, qual seja: o homem, mediante o uso da razão, é capaz de se libertar do julgo da natureza e das concepções míticas, religiosas e metafísicas do mundo. A razão passa a ser entendida, pois, como processo de esclarecimento, autoconsciência e desencantamento da natureza e do mundo, na perspectiva de garantir a autonomia e a liberdade do homem.

A essência desta reflexão encontra respaldo também em Batistela e Boneti (2008, p. 1101) ao afirmarem que:

A modernidade é, então, esse movimento em que o humano expressa, progressivamente, a megalomania de subordinar toda força natural do mundo. O surgimento de elementos fundamentais como filosofia e ciência modernas, por exemplo, parecem depender, essencialmente, do amadurecimento e da intensificação do poder difuso e arrebatador dessa nova perspectiva.

Assim, fica claro que o período histórico iniciado com o Renascimento e que culminou na chamada Revolução Industrial, traz como uma de suas consequências mais importantes e consolidadas o distanciamento paulatino entre o homem e a natureza, quer pela postura de dominação utilitarista que passa a predominar, como também pelo novo ordenamento espacial e temporal, cada vez mais artificializado e subjulgado ao sistema econômico emergente.

O culto à velocidade, argumento-mor da eclosão de movimentos contestatórios à aceleração desmedida, como será visto em seção posterior deste artigo, já é destacado e associado ao modernismo florescente por Mcquire (1998 apud FEATHERSTONE, 2000, p. 184):

Modernidade tornou-se sinônimo de aceleração em todas as áreas da vida social. A velocidade foi a alma mecânica da modernidade, não apenas para os vanguardistas cujas aspirações de queimar bibliotecas e demolir museus transformaram a arte, mas para empreendedores, inventores e todos os demais apóstolos do progresso que ficaram fascinados pelo impulso de ir mais rápido e viajar mais longe, dinamizar a vida e impulsioná-la para o futuro – à força, se necessário.

Garcia (2001, p.3) destaca, além da necessidade crescente de acelerar os processos e comportamentos humanos individuais e coletivos, o surgimento da visão mecanicista, que também passa a ser predominante no Ocidente a partir dos séculos XVII e XVIII.

[…] descobriu-se que se podia fazer com que os seres humanos trabalhassem pelo tempo do relógio. O tempo se converteu assim em um bem precioso do qual se queria ter cada vez mais e mais”. “[…] É precisamente a uniformidade e indiferença de um fluxo de tempo linear e mensurável o que permite qualquer manipulação, separação, condensação, precisão, estandardização, etc.

Contudo, um dos autores que melhor detalha os valores emergentes a partir da consolidação da industrialização na Inglaterra e países capitalistas da Europa e América do Norte é mesmo Toffler (1980), ao afirmar que a passagem da sociedade rural a industrial se pautou em uma longa e complexa transformação em todas as esferas socioculturais. Havia o predomínio de uma economia, cultura e arranjo social pautados na economia e na autossuficiência que gradativamente se modificou para algo interdependente e massificado. Assim, a relativa estabilidade espacial e temporal adquirida até então sofre uma ruptura definitiva, a partir da consolidação dos seguintes valores, bases das emergentes ciências da gestão: padronização, especialização, sincronização, concentração, maximização e centralização.

Tal fato tem cerceado a liberdade e a criatividade humanas no sentido mais filosófico e artístico. O mercado e o trabalho passaram a ser considerados como os propulsores do desenvolvimento, inclusive atrelando-se às áreas do conhecimento/expressões humanas citadas. De acordo ainda com Toffler (1980), o século XIX, momento histórico de consolidação da Revolução Industrial, já indica um período de engessamento e condicionamento das relações socioculturais a partir do valor base de segregação àquela associado:

[...] O industrialismo revolucionou completamente a situação em comparação com a era rural. O século XIX, na verdade, foi chamado o período do “Grande Enceramento”. Um período em que os criminosos foram detidos e concentrados nas prisões, os doentes mentais encerrados em manicômios, as crianças concentradas nas escolas, assim como os trabalhadores foram concentrados nas fábricas. (TOFFLER, 1980 p. 67)

Não é por acaso que o final do século XIX e a primeira metade do século XX consistem um período no qual aflora, de um lado, um sistema capitalista mais sofisticado e complexo, exemplificado pelo neocolonialismo e suas consequências bélicas, pelo surgimento e crescimento da indústria cultural, e pelos novos modelos de administração empresarial; de outro lado, a ascensão de um sistema socialista, que apesar de propor um reordenamento social mais justo, ainda se pauta nas relações de mercado e de trabalho como artífices da mudança.

A hegemonia da visão utilitarista de mundo fez com que se formassem as bases de movimentos socioculturais contestatórios, a partir da segunda metade do século XX. Como elemento comum a ele observa-se o fato de estarem atrelados a um equilíbrio e proximidade maior com a natureza e com a essência não mercantil e industrial do homem, tanto em termos espaciais e comportamentais, como também no âmbito temporal.

Não se pode ignorar o colapso do socialismo real e a fragmentação de várias regiões antigamente unidas por uma geopolítica ideológica, seja do antigo bloco socialista, seja do bloco militar representado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), seja dos tratados econômico-políticos (ONU, acordos de Bretton Woods, FMI, Banco Mundial) e blocos econômicos que surgiram no período pós-II Guerra (União Europeia, APEC, Mercosul). Todos esses acontecimentos mudaram as faces do mundo. A questão da pós-modernidade insere-se nesse contexto de mudanças profundas, de dúvidas e angústias perante as novas formações sócio-políticas e econômicas. Lyotard, já em, 1979, antevê a crise conceitual e epistemológica inerente ao que ele denomina de as grandes narrativas. O filósofo francês também avança na concepção de que o saber (cultura, técnicas, tecnologias) seria a nova mercadoria essencialmente geradora de capital, poder e disputa. Autores como Christopher Lasch (O mínimo eu), Jeremy Rofkin (O fim do trabalho) e Richard Sennett (A corrosão do caráter) mostram como essa fragmentação ocorreu nas vidas pessoais e nos estilos de gestão corporativa e pública em vários pontos do mundo. As crises econômicas que se sucederam no início do século XXI, especialmente a crise de 2008/2009 que abalou os Estados Unidos e a Europa, ao lado dos escândalos políticos e financeiros que assolaram vários países do mundo, mostram claramente as novas e cruéis facetas de um sistema econômico global que se tornou extremamente veloz, cínico, brutal e concentrador de renda e riquezas.

A chamada sociedade pós-industrial, apenas um entre as dezenas de nomes com que as sociedades atuais foram designadas, expressa essas características desagregadoras em vários níveis de suas organizações, como bem demonstra Domenico De Masi em A sociedade pós-industrial (1999). Para se contraporem à histeria e neurastenia das mudanças rápidas, violentas e profundas, surgem movimentos que propõem outro ritmo para as vidas humanas e sociais. Mas para isso é preciso entender o que são esses fluxos e ritmos.

Contribuições da Cronobiologia à compreensão dos ritmos biológicos e sociais

Quando se fala que a Revolução Industrial trouxe uma nova dinâmica rítmica ao ser humano, significa considerar que, de uma vez por todas, o homem deixou de priorizar como regulador de suas temporalidades os fatores biológicos externos (meio) e internos (corpo), passando a reordenar seu comportamento pelas novas necessidades socioeconômicas atreladas à modernidade. Tal fato trouxe consequências inéditas e invariavelmente problemáticas a sua condição de vida.

Segundo Foucault (1989 apud VIANA, 2012), a Biologia moderna teria nascido com Darwin, sendo que antes existia um campo do conhecimento que pode ser denominado como História Natural. A discussão sobre a evolução das espécies esteve presente no eixo central dos trabalhos de Darwin, considerados até os dias atuais como paradigmas conceituais das Ciências Biológicas. Nesses, concluiu que partes da população de qualquer espécie estão sempre mais adaptadas que outras. Esta premissa biológica incita uma relevante discussão sobre temas intimamente relacionados aos Estudos Culturais, uma vez que se relaciona com questões como: igualdade de oportunidades, disputas de poder, estratégias e ações de dominação e hegemonia.

Uma das hipóteses mais aceitas por pesquisadores das Ciências Biológicas indica que o ser humano teria pautado sua evolução, essencialmente na economia de energia e tamanho do cérebro. A economia de recursos significaria, portanto, um pressuposto de sobrevivência baseando-se no fato de que aquilo que estimula a qualidade de vida (nutrientes, repouso, socialização, cooperação e competição - em certa medida -, têm como ponto de partida o respeito às temporalidades internas e externas).

Contudo, historicamente o olhar humano em relação aos seres vivos tem sido mais atrelado ao espaço, à morfologia, deixando em segundo plano, questões vinculadas aos ritmos e temporalidades. Tal perspectiva pode ser considerada equivocada, uma vez que as disputas entre grupos sociais, diretamente vinculadas aos processos de adaptação ao meio, têm sido cada vez mais relacionadas ao âmbito temporal. Como exemplos, podemos pensar que a luta pelo poder tem de forma crescente levado em consideração aspectos como quem ocupa antes ou desenvolve mais rapidamente algo relevante para sua “sobrevivência”. Isto, por si, aponta a necessidade de uma compreensão mais apurada acerca das temporalidades, incentivando o surgimento de novas áreas do conhecimento, como a Cronobiologia.

Foi por conta disso que nos anos 1960 emergiu esta nova vertente do conhecimento, que busca justamente organizar e discutir conceitos e ações relacionadas aos ritmos e temporalidades da vida, inclusive do homem. Ao contrário de outros seres vivos, os valores culturais incrustados por séculos e associados à Era Industrial surgem como hipótese de desequilíbrio entre os ritmos sociais e biológicos.

De acordo com Ascholf (1990 apud MENNA-BARRETO; MARQUES, 2003, p.40) os ritmos biológicos se caracterizam “[...] como expressão conjunta de fatores endógenos e exógenos [...]. É um termo que reflete uma visão do ritmo endógeno como o verdadeiro ritmo, que poderia ser obscurecido o mascarado pelos fatores externos.”

Neste contexto, a proposta da cronobiologia é, então, realizar [...] um estudo sistemático das características temporais da matéria viva, em todos os seus níveis de organização. Inclui o estudo dos ritmos biológicos, como por exemplo, as oscilações periódicas em variáveis biológicas e as mudanças associadas ao desenvolvimento. (HALBERG 1969 apud MENNA BARRETO; MARQUES, 2003, p. 32)

A Cronobiologia busca, portanto, em sua essência, caracterizar a dimensão temporal dos indivíduos. Para tal, parte da premissa que a temporalidade social tem como base a temporalidade ambiental. Nesta, o movimento deve ser considerado como a essência do tempo, levando em conta toda a complexidade conceitual que o tema incita.

Um dos aspectos mais relevantes que se pode discutir sobre o tema é a abrangência dos tempos sociais no contexto cultural contemporâneo à medida que a regulação do tempo ajuda a estabelecer, conforme dito, as relações de poder. Comportamentos estão relacionados, portanto, não somente ao espaço, mas também ao tempo, especialmente quando há variações de ambiente durante determinado período (algo inerente, por exemplo, à atividade turística, um dos símbolos culturais contemporâneos).

É preciso considerar ainda que a própria compartimentalização e sistematização do conhecimento são construções sociais. Achar que a natureza possui uma hierarquia, por exemplo, tem íntima relação com as normas sociais predominantes. Conforme De Masi (2000), a lógica industrial é baseada no paradigma da separação e segregação de ideias, pessoas e objetos.

Nesta linha de pensamento, pode-se dizer que as mesmas causas biológicas ou sociais não produzem sempre os mesmos efeitos biológicos ou sociais. Essa ideia tem relação com a chamada Teoria da Relatividade, desenvolvida por Albert Einstein no início do século XX e até com a Mecânica Quântica, no sentido da flexibilização e variabilidade dos fenômenos, o que parece em consonância com as teorias socioculturais de vanguarda.

De Masi (2000) destaca o aumento da velocidade das transformações ambientais e sociais, gerando um acirramento da competição e, por conseguinte, das disputas pelo poder. Vive-se, neste sentido, em uma condição social pautada por uma avalanche de informações, capaz de transformar os tempos individuais e sociais em experiências difusas, ou seja, em que cada vez se torna mais complexa a distinção das temporalidades, como àquelas associadas, por exemplo, ao trabalho, ao lazer e aos estudos. Este seria mais um sintoma de que os valores industriais estariam, em determinado contexto, em xeque.

Outro conceito importante esmiuçado pela Cronobiologia é a questão da ciclicidade. A dinâmica universal, ou seja, suas transformações são baseadas em ciclos temporais. Muitos desses ciclos, inclusive, teriam uma relação entre si, ainda que não seja simples mensurá-las. A ocorrência ritmada de fenômenos da natureza, com claros reflexos e até representações sociais, é um tipo de percepção que contribui para a evolução das espécies, uma vez que permite a antecipação de estratégias e ações de sobrevivência. Esta condição se aplica novamente à dinâmica social e tudo que a permeia, como as disputas de poder e a construção de ritos e símbolos culturais.

Outra constatação da Cronobiologia é que há uma organização temporal singular em cada organismo, o que significa que o mesmo vai ocorrer em termos coletivos. Além disso, nenhum fenômeno biológico deixa de oscilar, o que significa que a ritmicidade, com todas as suas oscilações, é o elemento fundamental para o desenvolvimento das espécies.

Isto, de certa maneira, desconstrói um dos conceitos vinculados à lógica industrial disseminado nas últimas décadas: aquele que, de fato, comprova a inexistência de um relógio biológico, especialmente quando se associa a figura deste medidor temporal com um processo mecânico. Essa perspectiva obscurece a compreensão do real funcionamento dos ritmos biológicos individuais e, consequentemente, coletivos. A frequência dos ciclos determina uma sequência que é codificada pelo organismo a fim de otimizar seus recursos (Ex: economizar energia enquanto se dorme). Já a adaptação temporal estaria vinculada a harmonização temporal entre a ritmicidade biológica e os ciclos ambientais, lembrando que ritmo é aquilo que varia periodicamente no tempo e que período é o intervalo de tempo em que determinado ciclo se completa. As chamadas fases biológicas, por sua vez, alteram-se entre repouso e atividade, algo que instantaneamente pode se associar ao fenômeno de contraposição entre, por exemplo, lazer e trabalho, tornando-se uma expressão cultural em sintonia com as questões orgânicas ligadas a temporalidade.

Outro conceito importante aponta que a sequência temporal entre os ritmos biológicos é denominada de ordem temporal interna, sendo que durante as 24 horas diárias, manifestam-se diversos desses ritmos. Todavia, como poderia se supor, há cada vez mais constatações de que diversos fatores sociais são capazes de afetar os ritmos biológicos e vice-versa. Sua mensuração, entretanto, aparentemente é mais complexa em relação aos indicadores provenientes da geofísica.

Aschoff e Wever (1976 apud MENNA-BARRETO; DÍEZ, 2011) sugerem que a interação social tem importante papel na sincronização dos indivíduos humanos, ainda que tal conceito não tenha uma aceitação definitiva entre os estudiosos da área.

Por fim, uma das descobertas mais notáveis da Cronobiologia indica que os ritmos biológicos associados ao contraste diário Claro/Escuro (CE) – os quais são conhecidos como ritmos circadianos – são bastante variados, apresentação uma duração entre 20h e 28h de acordo com a espécie. Seres humanos têm um ciclo biológico interno de aproximadamente 25h de duração. Já as galinhas, 23h. Assim, a Cronobiologia aponta que todos os seres vivos apresentam periodicidade próxima a 24 horas diárias, mas nunca idêntica (o que reforça o desajuste que a lógica industrial do tempo mecânico traz).

Há, neste sentido, uma disputa constante e diária entre o ciclo circadiano humano e a imposição temporal mecânica do relógio. Para resolver tal questão, o corpo cria alguns mecanismos de sincronização denominados arrastamento e mascaramento rítmicos. No primeiro caso, o ser humano é impelido a uma aceleração diariamente constante, para cumprir seu ciclo biológico de 25h em 24h, algo agravado pelo ciclo social intenso exigido em períodos cada vez mais curtos, tornando a dinâmica biológica e social frenética e desajustada. Já o mascaramento muda o ritmo no momento e não em longo prazo (Ex: telefone tocar durante o sono profundo no meio da madrugada), algo frequente, por exemplo, no âmbito do turismo, especialmente quando o viajante, cercado de expectativas e investimentos em torno da viagem, procura otimizar o uso do tempo abrindo mão de ciclos cotidianos que o aproximam do estado de equilíbrio, como o período de repouso/sono diário. Ao passar a noite em claro ou dormir menos horas para aproveitar experiências de viagem, o ser humano claramente abre mão de sua condição temporal padrão. Muitos estudiosos indicam que tal processo, vivenciado esporadicamente, traria mais benefícios que malefícios à sua condição individual e coletiva, uma vez que despertaria processos fisiológicos atrofiados ao longo do tempo. Contudo, um posicionamento de confronto mais contínuo com os ciclos e ritmos biológicos do indivíduo invariavelmente trazem prejuízos ao seu bem-estar.

Neste caminho, Coren (1996) destaca que as mudanças no estilo de vida e a luta pela sobrevivência traçaram um caminho diferente de nossas mudanças físicas, de modo que nossas necessidades biológicas seguem, diversas vezes, em descompasso com nossas necessidades sociais. Um exemplo disso seria o sono, pouco considerado como fator de importância em nossa sociedade, pois de acordo com Coren (1996, p 12) “A visão de que dormir é quase indecente, além de ser um desperdício, é quase universal”.

Assim, percebe-se que os fatores sociais exercem forte influência sobre as escolhas e, principalmente, sobre a ordenação do tempo, contudo, como apontam Louzada e Menna - Barreto (2007, p. 82):

Não se trata de uma oposição entre os fatores biológicos e sociais, o mais provável é que estejamos diante de uma interação entre esses fatores que acaba se somando e gerando problemas. Os fatores biológicos, que tendem a atuar a médio e longo prazo, tendem a ser mais silenciosos ou menos evidentes, já os fatores sociais estão nas manchetes dos nossos cotidianos.

Nesse sentido, as implicações sociais desses processos biológicos também se tornam alvo de pesquisa e é possível encontrar materiais sobre a relação desses osciladores temporais endógenos com a vida escolar, com o trabalho, com o lazer e com alguns outros aspectos da vida social.

Um exemplo definitivo do descompasso biológico e sociocultural dos dias atuais se observa a partir da condição biológica humana, que o torna uma espécie originalmente ativa durante o período do dia. Segundo Martino (2002), o ser humano apresenta uma maior disposição para o repouso ou período de sono à noite ou na fase escura do ciclo natural circadiano.

Porém, na sociedade moderna, a intensidade de luz doméstica durante a noite junto com, por exemplo, atividades sociais, assistir televisão até tarde da noite, e horários de trabalhos irregulares podem ser responsáveis pelo atraso na fase de sono e/ou uma fase inapropriada de sono relativa ao relógio endógeno, levando a alterações comportamentais e riscos à saúde das pessoas envolvidas (LORTIE; FORET; TEIGER; LAVILLE, 1979; ARENDT, 2003; MOSER; FRÜHWIRTH; PENTER; WINKER, 2006).

Efeitos diretamente ligados à privação de sono são: desânimo, fraqueza, insônia, sensação de “ressaca”, descontrole, irritabilidade, agressividade, ansiedade, tremor, alterações gastrointestinais, obesidade e envelhecimento precoce (ROTENBERG; PORTELA; MARCONDES; MORENO; NASCIMENTO, 2001). Além disso, a sonolência pode desencadear a diminuição de atenção e aumentar o risco de acidentes de trabalho (GASPAR; MORENO; MENNA-BARRETO, 1998; GEORGE; SLILEY, 1999; MORENO; FISCHER; MENNA-BARRETO, 2003).

Nas últimas décadas muitos governos e empresas passaram a adotar um discurso de busca de reequilíbrio temporal. Em alguns países, como a França, a jornada de trabalho gradativamente diminuiu ao longo do século XX. Ademais, alguns direitos trabalhistas foram conquistados a partir das constatações de prejuízos fisiológicas relacionados a atividades essencialmente noturnas e/ou desvinculadas da ritmicidade natural endógena e exógena.

Novamente, contudo, observa-se o predomínio da visão utilitarista, mantendo no epicentro das construções socioculturais o trabalho, o dinheiro e o mercado. Isso traz à tona uma reação cada vez mais forte e espontânea de alternativas de vida menos aceleradas, mecanizadas e mercantilizadas, entre as quais se expressa o Slow Movement.

Slow Movement como Expressão de Contestação Cultural de Caráter Temporal

As transformações ensejadas por movimentos contestatórios como o Slow Movement são, ao mesmo tempo, propostas de inovação das dinâmicas socioculturais intituladas pós-industriais e a retomada de valores pré-industriais, como destaca Castells (1999) ao afirmar que há uma velha/nova perspectiva de valorização crescente dos núcleos comunitários e dos processos de construção e disseminação ideológicas construídas de modo horizontal e não vertical, como prevalecera na visão industrializadora.

Castells (1999) destaca que a resistência cultural manifestada em diferentes pequenas escalas (individual, micro comunitária, urbe-comunitária, entre outras), gera um sentimento de pertencimento e leva à formação de uma identidade cultural, não raro comunal, Ainda segundo Castells (1999, p. 65), “[…] para que isso aconteça, faz-se necessário um processo de mobilização social, isto é, as pessoas precisam participar de movimentos urbanos (não exatamente revolucionários)”.

Assim, os movimentos sociais urbanos, difusos, fragmentados, informalizados e, por vezes, contraditórios, representariam a mais recente e possivelmente relevante reação aos processos de dominação e exploração, alimentadas pelo sistema político-ideológico em vigor. Seria, segundo o citado autor, uma espécie de sintoma de nossa própria crise ideológica, a qual, por sua vez, parece ser fundamental para a reconstrução das identidades e consequente transformação da sociedade.

Vivenciamos no último quarto de século o avanço de expressões poderosas de identidade coletiva que desafiam a globalização e o cosmopolitismo em função da singularidade cultural e do controle das pessoas sobre suas próprias vidas e ambientes. Essas expressões encerram acepções múltiplas, são altamente diversificadas e seguem os contornos pertinentes a cada cultura, bem como às fontes históricas da formação de cada identidade. Incorporam movimentos de tendência ativa voltados à transformação das relações humanas em seu nível mais básico, como, por exemplo, o feminismo e o ambientalismo. Mas incluem também ampla gama de movimentos reativos que cavam suas trincheiras de resistência em defesa das categorias fundamentais da existência humana milenar. (CASTELLS, 1999, p. 68)

Nesse sentido, a consolidação de uma perspectiva pós-industrial de sociedade se faz presente e necessária, sendo a ascensão do Movimento Slow um dos sintomas mais representativos dessa transformação em diversas esferas.

O Slow Movement aparece com destaque nos últimos anos, pela sua autenticidade tanto em termos de ideologia como em relação a sua estrutura organizacional - pautada na construção de redes comunitárias e desenvolvimento de grupos de trabalho e estudo; pelo rápido crescimento e reconhecimento obtido em diversos países nos últimos anos; e pelo fato de tratar de um tema de grande interesse aos dias atuais – a recuperação da qualidade de vida através do reequilíbrio em diversas perspectivas, tendo como elemento central uma nova relação com a temporalidade.

Desta maneira, coloca-se como uma filosofia avessa aos impactos negativos da globalização econômica e cultural, especialmente no que concerne aos desequilíbrios gerados pela aceleração desmedida dos procedimentos e relações sociais. O movimento propõe, ao menos em tese, nova relação do homem, consigo, com seu meio, seus sistemas de produção, de concepção de valores e de ordenamento institucional, tudo isso a partir da transformação da relação da sociedade com o tempo.

Além disso, é importante salientar que muitas das correntes ideológicas contemporâneas de contracultura, entre as quais se situa tal movimento, se constituem de modo orgânico, flexível, com elementos complementares entre si que combinam intuição e razão; subjetividade e objetividade; rigor científico e flexibilidade metodológica; algo bastante relacionado ao atual processo histórico de desconstrução de paradigmas culturais pautados na lógica industrial, em um contexto transitório para uma pretensa sociedade pós-industrial. Em outros termos, a abordagem essencialmente utilitarista, pragmática, positivista e sistêmica não representa por si a única nem a melhor forma de buscar sua essência epistemológica. Conforme Castillo Nechar e Panosso Netto (2010) propõem, ainda que tais elementos tradicionais não devam ser descartados, estes devem ser complementados por uma visão mais flexível e multifacetada enquanto fenômeno cultural vigente.

O Slow Movement, propriamente dito, surge no último quarto do século XX e não desponta de modo plenamente estruturado ou coletivizado. Ele é resultado de reações pontuais de pessoas ou pequenos grupos nos mais diversos segmentos da sociedade.

Do ponto de vista conceitual vale destacar a análise de Arins e Van Bellen (2009, p.19):

O objeto de estudo (movimento slow) é percebido como resposta à lógica produtiva incrustada no estilo de vida das sociedades. Como movimento social, propõe a transição de uma sociedade com modelos culturais guiados pela eficiência e pela síndrome do tempo para uma sociedade com modelos mais holísticos e integrativos. Suas ações partem de um manifesto que critica a lógica da eficiência no cotidiano da vida social e o diagnóstico de suas mazelas, propondo a mudança de comportamento e a ressignificação de valores da sociedade.

No âmbito ideológico, essa conceituação se aproxima da reflexão apresentada por Naigeborin (2011) em que se estabelece como alternativa de desenvolvimento sociocultural. A citada autora afirma que “O Movimento Devagar representa uma tentativa de conscientização e estímulo às pessoas, mostrando que existe outro caminho, uma alternativa para viver com mais qualidade neste contexto onde o turbo-capitalismo tem um custo humano muito alto.” (NAIGEBORIN, 2011, p. 32)

Como pressuposto, o movimento não pretende negar a velocidade, mas propõe uma relação mais saudável com ela, como afirma Honoré (2006, p. 38):

Apesar do que dizem os críticos, o Movimento Devagar não está preocupado em fazer as coisas em ritmo de cágado. Nem é uma tentativa como o movimento luddita[2] [2] Movimento Luddita ou Ludista foi inspirado no líder operário inglês Ned Ludd, eclodindo no início do século XIX como contestação aos avanços tecnológicos ocorridos na Revolução Industrial, especialmente contra a substituição da mão-de-obra humana pelas máquinas. Disponível em:< http://srv.emc.ufsc.br/nepet/Seminarios/2012_2/Rev_industrial_Fabricio_Vinicius.pdf >. Acesso em : 21 maio 2013., que outrora tentou arrastar todo o planeta de volta a uma utopia pré-industrial. Pelo contrário, o movimento é constituído de pessoas como você e eu, pessoas que querem viver melhor no moderno mundo da velocidade. Por isto é que a filosofia Devagar pode ser resumida numa única palavra: equilíbrio.

Com relação à abrangência e desdobramentos do Slow Movement, convém realçar que cada vertente sua apresenta um estágio de desenvolvimento e inclusão social particular, o que dificulta, inclusive, o estabelecimento de critérios de classificação ou hierarquização de sua importância.

Do ponto de vista didático/metodológico uma considerável referência é colocada por Arins e Van Bellen (2009), através de quadros/síntese que abordam comparativamente os valores da sociedade industrial e do Slow Movement, em relação aos estilos de vida; modelos culturais e estruturas de consumo:

Quadro 1: Estilos de Vida
Valores da Sociedade Industrial Valores do Slow Movement (Pós-industriais)
Uso do tempo aprisiona Uso do tempo liberta
Expansão Conservação
Competição Cooperação
Dominação Parceria
Quantidade Qualidade
Eficiência é fim Eficiência é meio
Fonte: Adaptado de Arins e Van Bellen (2009, p.3)
Quadro 2: Modelos Culturais
Valores da Sociedade Industrial Valores do Slow Movement (Pós-industriais)
Autoafirmativo Intuitivo
Racional Sintético
Linear Não linear
Reducionista Holístico
Fonte: Adaptado de Arins e Van Bellen (2009, p.3)
Quadro 3: Estruturas de Consumo
Valores da Sociedade Industrial Valores do Slow Movement (Pós-Industriais)
Predatório Colaborativo
Ter > Ser Ser > Ter
Alienador Emancipador
Consumo material supre necessidades não materiais Faz-se distinção de necessidades
materiais e não materiais
Fonte: Adaptado de Arins e Van Bellen (2009, p.3)

Os mesmos autores servem de referência para elucidar a abrangência do fenômeno Slow.

Encontraram-se quatorze movimentos sociais com características slow e crítica à conduta mecanicista. Para a seleção dos movimentos pesquisados, delimita-se como critério o tamanho do movimento considerando a sua abrangência e a penetração social, diagnosticados por: (a) abrangência geográfica em atividades; (b) número de participantes; (c) tempo de existência (ano de fundação) e atividades realizadas (descritas na análise material). Mesmo com esses critérios, percebeu-se a não formalidade de controle dos membros dos movimentos que, com exceção do Slow Food e Cittaslow, não registram seus participantes, apenas controlando o fluxo de visitas através da página virtual. (ARINS; VAN BELLEN, 2009, p.4)

Com tudo isso, cumpre apresentar algumas referências essenciais das duas vertentes mais exitosas do Movimento Slow. A primeira expressão cultural de contestação ao culto velocista atrelado à filosofia lenta se deu na esfera da alimentação, com o surgimento, em 1986, do Movimento Slow Food na Itália. Este se baliza na rejeição à tendência de padronização alimentar mundial, especialmente aquela vinculada ao fast food, defendendo a necessidade de informação entre os consumidores, tornando-os coprodutores. Incentiva ainda o direito ao prazer da alimentação, através do uso de produtos artesanais qualificados, elaborados de maneira a respeitar tanto o meio ambiente quanto as pessoas que cuidam de sua produção (SLOW FOOD BRASIL, 2013).

Segundo a citada entidade, o movimento conta com mais de 100.000 membros e possui escritórios em diversos países, tais como: Itália, Alemanha, Suíça, EUA, França, Japão e Reino Unido. Cerca de 150 países possuem apoiadores e/ou entusiastas do Slow Food, algo que ocorre, inclusive, no Brasil, através de Movimento Slow Food Brasil. Tudo isso o torna o mais representativo movimento contestatório no âmbito do Slow Movement.

Já o Movimento Cittàslow/Slow City (Cidades Lentas, na tradução literal) possuem uma terminologia menos óbvia no Brasil, de acordo com sua origem idiomática, que é anglo-italiana. São traduzidas como “Cidades do Bem Viver”, em alusão ao termo italiano Città del buon vivere.

O Movimento das Cidades do Bem Viver surgiu em 1999 sob a ideia central de promover um desenvolvimento diferente para as cidades, com a premissa de melhorar a qualidade de vida da população local a partir de uma nova relação com o espaço, o tempo e o próximo. Em 2013 havia 168 intituladas cidades do bem viver, distribuídas em 11 países. Para receberem tal chancela, elas passam pela avaliação da entidade representativa do movimento, tendo que cumprir mais de 50 requisitos vinculados à conservação ambiental, ocupação racional do espaço, uso sustentável de tecnologias, fortalecimento da cadeia produtiva local e saudável, valorização das tradições culturais e identidades locais, hospitalidade, e conscientização e participação comunitária. (CITTÀSLOW, 2013)

Em contrapartida, conforme Arins e Van Bellen (2009), o Slow Travel pode ser considerado um movimento ainda em vias de formalização, mas de relevante abrangência e influência ideológica. O Movimento Slow Travel Portugal (2012) traz uma clara e abrangente definição acerca do Slow Travel:

[…] pode ser definido como a oportunidade do visitante em se tornar parte integrante do destino, contatando com a população e com o território, num ritmo adequado à apreensão da cultura local. Este movimento silencioso contraria o estilo de turismo que se afirmou no século passado, ou seja, os charters turísticos, os all-inclusive, as excursões programadas e planejadas, os horários, etc. O “Slow Travel” valoriza a estada prolongada, com tempo suficiente para ir mais além do que o “must see[3] [3] Must See: do inglês, “Aquilo que se deve ver, contemplar”. É uma expressão utilizada no âmbito do turismo referente aos atrativos consagrados, que geralmente são procurados de forma ávida por visitantes interessados no status de ter passado e fotografado aquele local, sem usufruí-lo com a calma e profundidade devidas.”. Contatar com espaços locais, de pequena dimensão, com os produtores, com os mercados, com as populações, visitar aquela pequena igreja ou restaurante que não constam dos guias, ou seja, explorar, descobrir, usufruir, são os princípios do “Slow Travel”. O “Slow Travel” é uma “forma de estar” que surge como um contra-ciclo ao que é estipulado pelos grandes operadores turísticos. (SLOW TRAVEL PORTUGAL, 2012)

Assim, a primeira impressão que muitos podem ter em relação ao Slow Travel é que seria uma modalidade de viagem aplicável somente em ambientes com baixa densidade populacional, como as destinações rurais. Todavia, seu conceito é aplicável a qualquer espaço, conforme destaca a entidade citada.

De acordo com o Global Trends Report 2008 (apud Slow Travel Portugal, 2012) o Movimento Slow Travel tende a se afirmar nos próximos anos como um padrão de comportamento crescente em viagens, conforme destacado:

A atual conjuntura econômica e o debate sobre as alterações climáticas vêm reforçar o potencial de crescimento deste mercado, sugerindo aos destinos a aposta de produtos que os valorizem. Uma vez que se assume como um movimento alternativo aos padrões turísticos atuais, o “Slow Travel” não é uma moda, mas sim um estilo de vida baseado nos novos padrões comportamentais assumidos por uma sociedade responsável. (GLOBAL TRENDS REPORT, 2008, apud SLOW TRAVEL PORTUGAL, 2012).

Entre as ações vinculadas a um turista slow, destacam-se: “Tornar-se parte do local que se visita, apreciar as esplanadas[4] [4] Esplanadas: termo utilizado em Portugal, cujo similar no Brasil seria “paisagens”.. Conversar com quem ali vive, procurar entender as pessoas, os modos de viver, os espaços. Escolher os locais com que mais nos identificamos e passar lá horas. Conhecer a pé, de bicicleta, de comboio. Participar das atividades locais, contribuir para o seu desenvolvimento.” (SLOW MOVEMENT PORTUGAL, 2012).

Tais referências se aproximam daquelas apresentadas pela Associação Internacional do Movimento Devagar (SLOW MOVEMENT INTERNATIONAL, 2013), a qual aponta como aspectos inerentes ao Slow Travel a oportunidade de se conectar a um lugar e seu povo, imergindo na cultura alheia; explorar com detalhes os arredores do local de estada, sentir-se confortável por estar hospedado em um local despojado e aconchegante ; e/ou envolver-se com uma causa local, como um trabalho voluntário, gerando uma nova modalidade de viagem: o “volunturismo[5] [5] “Volunturismo”: do inglês,voluntourism, seria algo como viajar tendo como motivação principal alguma ação voluntária, uma ocupação em prol das pessoas da localidade visitada.”. (SLOW MOVEMENT INTERNATIONAL, 2013).

Segundo a Entidade Europeia de Viagens Lentas (SLOW TRAVEL EUROPE, 2013) existem alguns princípios para se realizar uma Viagem Lenta. Essas contemplam a mudança do estado mental para se viajar, preparando-se para a ocasião sem ansiedade; o uso de meios de transporte mais lentos, ecológicos, coletivizados e com possibilidades de contemplação paisagística profunda; visitas a estabelecimentos locais, como cafés, lojas e mercados; envolvimento com o idioma local; procurar opções de lazer vivenciadas pelos próprios moradores; retribuir afetivamente o intercâmbio humano estabelecido.

Pelos estudos feitos, evidencia-se que as viagens lentas também revelam outra vertente dos deslocamentos, qual seja, a do turismo de experiência (URIELY, 2005; PANOSSO NETTO, 2009; DALONSO et al., 2014). Este tipo de turismo trata-se de uma nova forma de consumo. Os turistas desejam viagens que agreguem valor perceptível a partir de seus desejos e necessidades. Para isso querem se envolver com o local que visitam, sentir o que os moradores locais sentem, comer da mesma comida e participar das mesmas cerimônias. Tudo isso necessita tempo, em slow motion. O segmento do turismo de experiência, portanto, é um reflexo e uma reação à aceleração pós-moderna, é mais um sinal de que a velocidade exacerbada pode não ser a melhor forma de se experienciar algo verdadeiramente.

Considerações Finais

Nos dias atuais, de latente revolução civilizatória, nota-se que as mudanças acontecem com uma rapidez e profundidade sem precedentes. Essa vertiginosa transformação, iniciada a partir da disseminação dos valores ditos modernos associados à Revolução Industrial, têm culminado na chamara Era Global, em que todo o planeta se vê em um amálgama de paradoxos e contradições, expressadas inclusive nas esferas culturais e biológicas.

Um de seus sintomas mais emblemáticos é a aceleração invariavelmente desmedida da sociedade, em nome de um progresso estéril atrelado ao consumismo sem limites. Neste sentido, as diferenças entre as temporalidades biológicas, externas e internas e as temporalidades sociais, têm se acentuando, fazendo emergir novas áreas do conhecimento que buscam compreender a dimensão e a dinâmica deste descompasso, com destaque para a Cronobiologia e para os Estudos Culturais.

No presente artigo procuramos demonstrar a possibilidade de aproximação entre as duas áreas de conhecimento supracitadas, uma vez que as mudanças culturais afetam de modo determinante as questões fisiológicas e ambientais, e vice-versa.

Além disso, notamos que os desequilíbrios têm afetado de modo cada vez mais grave a qualidade de vida das espécies na contemporaneidade, ainda mais porque medidas paliativas de contenção desses desequilíbrios obedecem, em sua maioria, a ainda forte visão utilitarista/industrial que comandou ideologicamente o mundo por mais de dois séculos.

Como alento, contudo, os movimentos contestatórios do período pós-guerra têm emergido como uma resposta não dogmática e tampouco mercantil às agruras do cotidiano. Ao lado do pós-socialismo, feminismo, movimento beat, movimento hippie e do ambientalismo, surgiu nas últimas décadas uma mobilização social de contracultura pautada no questionamento aos distúrbios das relações temporais contemporâneas.

O Slow Movement é uma filosofia nova, difusa, mas que apresenta desdobramentos cada vez mais representativos nos diversos aspectos culturais da sociedade atual. Com tudo isso, representa um sintoma claro de que as questões ligadas aos ritmos sociais estão em descompasso com os ritmos biológicos externos (do meio) e internos (do corpo humano), sendo um tema de interesse tanto da Cronobiologia como dos Estudos Culturais.

notas de rodapé

 

[1] É importante salientar que as obras de Alvin Toffler foram decisivas em termos descrição de cenários e possibilidades para as sociedades que, poucas décadas depois do final da II Guerra Mundial, vislumbravam recursos e desafios inéditos. Graças aos avanços da eletrônica que se refletia na gestão informatizada de negócios, bancos de dados “inteligentes”, telecomunicações e capacidade produtiva industrial baseada em alta tecnologia de informática e robótica, o mundo adquiria configurações econômicas, sociais, políticas e culturais bastante singulares. Seus livros pontuaram essas transformações. Em 1970 ele publicou O choque do futuro; em 1980 A Terceira Onda; e em 1990 Powershift – conhecimento, riqueza e violência no início do século XXI. Contemporâneos de Toffler e igualmente respeitados pelo mundo financeiro e corporativo internacional, John Naisbitt e Patricia Aburdene publicaram, em 1990 Megatrends 2000. Esses autores foram os últimos analistas internacionais liberais significativos a fazer análise e prospecção de cenários para o mundo que se transformava rapidamente. Na transição do século XX para o século XXI as incertezas, tecnologias disruptivas e novos métodos de violência global (terrorismo, guerras preventivas, crescimento de ódios étnicos e religiosos, máfias globais, incremento do narcotráfico) inviabilizaram as grandes narrativas e os leques de probabilidades abrangentes sobre o futuro próximo das sociedades e dos mercados. Mas até então era possível traçar grandes tendências. Foi justamente o que Toffler tentou e, em larga medida, sendo bem sucedido nas análises.

[2]Movimento Luddita ou Ludista foi inspirado no líder operário inglês Ned Ludd, eclodindo no início do século XIX como contestação aos avanços tecnológicos ocorridos na Revolução Industrial, especialmente contra a substituição da mão-de-obra humana pelas máquinas. Disponível em:. Acesso em : 21 maio 2013.

[3]Must See: do inglês, “Aquilo que se deve ver, contemplar”. É uma expressão utilizada no âmbito do turismo referente aos atrativos consagrados, que geralmente são procurados de forma ávida por visitantes interessados no status de ter passado e fotografado aquele local, sem usufruí-lo com a calma e profundidade devidas.

[4]Esplanadas: termo utilizado em Portugal, cujo similar no Brasil seria “paisagens”.

[5]“Volunturismo”: do inglês,voluntourism, seria algo como viajar tendo como motivação principal alguma ação voluntária, uma ocupação em prol das pessoas da localidade visitada.

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