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  • Temporalidades

    Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.

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  • Editorial

    Editorial

    por 
    os editores
    resumo 
    A Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Eduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira.
  • Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    por 
    Eduardo Wanderley Martins e Carlos Velázquez
    resumo 
    O presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino.
    palavras-chave 
  • Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    por 
    Damián Cabrera
    resumo 
    Passando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada.
    palavras-chave 
  • O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    por 
    Madalena Pedroso Aulicino e Daniela Marcílio
    resumo 
    O brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje.
    palavras-chave 
  • Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    por 
    Agnès García Ventura
    resumo 
    Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
  • A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    por 
    André Vitor
    resumo 
    Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.
    palavras-chave 
  • Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    por 
    Mariana Moreira
    resumo 
    A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
    palavras-chave 
artigo anterior 

Valesca Popozuda: ministra da Educação

por 
Aristóteles Berino
resumo 
Os chamados funks sensuais fazem parte da cultura juvenil da cidade do Rio de Janeiro. Valesca Popozuda é uma das suas principais estrelas, amplamente conhecida através das mídias. As vozes femininas do funk chamam atenção pelas letras que narram façanhas e fantasias que destoam da imagem que são destinadas ao sexo feminino. São vozes que que presentificam existências recalcadas pelo falocentrismo dominantes nas narrativas sobre o amor, o sexo e a vida na cidade. Seus aspectos políticos e culturais são agora estudados e debatidos. A política convencional também desperta para a cultura popular das periferias. O artigo lembra dois encontros ocorridos entre Lula e Valesca Popuzada, nos anos de 2008 e 2009. Oportunidade para a funkeira entregar ao então presidente uma letra de música que fala da favela, do funk, dos jovens e até da possibilidade de ser ministra da Educação. O artigo discute a intromissão das vozes femininas dos funks sensuais na vida das cidades como agenciamento politicamente significativo através das interpelações que produz. Na tradição dos estudos culturais, se propõe a problematizar o poder através também da criação popular no circuito da cidade.
próximo artigo 

Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar

por 
Maria Elena Infante-Malachias
resumo 
Neste ensaio apresentamos uma reflexão sobre a matriz biológico-cultural da existência humana a partir da epistemologia da Biologia do Conhecer, que considera o conhecimento a partir do sujeito que conhece. A matriz que constitui o cerne da Biologia Cultural corresponde à trama relacional onde o homem surge se realiza e conserva o seu viver humano. Nesta trama relacional que se inicia em um processo histórico que teve a sua origem há bilhões de anos, surgem todos os mundos que vivemos como as distintas dimensões do nosso viver cultural. Discutimos a relevância desta perspectiva, que considera ao mesmo tempo a constituição biológica e a cultura, para as relações humanas do ensinar e aprender e destacamos a possibilidade de transformação que surge ao considerar o outro como um legítimo outro na convivência.
 
dossiê sobre cultura popular urbana

Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

por 
Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
resumo 

No início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada.

abstract 

In the beginning of 2014, the phenomenon known as rolezinho (literately little roll) gained widespread national and international visibility. Teenagers from peripheries gather in large numbers to walk (give a 'rolé') and have fun in the shopping center of their cities. The event provoked costumers’ apprehension and some malls gained the right to prohibit the event, closing the doors to the teenagers. Since then, it has emerged a broad debate about segregation in Brazilian society. Based on an ethnographic research on young people’s consumption in the periphery of the city of Porto Alegre, Brazil, the article analyzes the phenomenon of rolezinhos addressing their local, national and global dimensions. Taking into account the current Brazilian moment, which is marked by both the public social policies for social inclusion via consumption, as well as a wave of social protests, we argue that rolezinhos are changing their very nature and promoting different ways to discuss and make everyday politics at the heart of a segregated society.

 

Recentemente, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear, namorar e cantar funk nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e, consequentemente, fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Deste então, emergiu um amplo debate sobre a ferida aberta da segregação racial e social na sociedade brasileira, uma vez que a maioria desses jovens é composta por negros e pobres.

O assunto dos rolezinhos foi o tema mais debatido nas redes sociais e na mídia impressa entre dezembro de 2013 a janeiro de 2014. O engajamento crítico da população brasileira pode ser comparado aos protestos que marcaram o país em junho de 2013, constituindo-se uma continuidade do “ano que não acabou”. Ainda que grande parte tenha apoiado os jovens em seu direito de ir e vir e de se divertir, estima-se que a maioria da população urbana tenha repudiado o acontecido. Uma pesquisa da época mostrou que 80% dos paulistanos desaprovavam os rolezinhos e 72% entendiam que a polícia militar deveria agir para reprimi-los [1][1] Fonte: Pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em 23/01/2014 .Cruzando com a análise qualitativa dos comentários das redes sociais, fica evidente que a rejeição da população brasileira ao fenômeno é grande, legitimando a ação violenta da polícia e a postura segregacionista dos estabelecimentos de camadas médias.

Durante o auge das discussões sobre o tema, muitas pessoas diziam não conseguir entender como uma brincadeira de jovens podia ter se tornado o assunto mais importante do país. Dizia-se que “era falta do que discutir”, um “tema inútil” ante tantos outros problemas “sérios”. Numa posição contrária, este artigo entende que o fenômeno dos rolezinhos “é bom para pensar”, parafraseando livremente Lévi-Strauss (1962). Ele traz à tona, de forma áspera e evidente, as estruturas da desigualdade profundamente enraizadas na sociedade brasileira, as quais foram sendo sedimentadas ao longo da história de um país colonizado e segregado cuja mitologia e ideologia versam sobre a democracia racial, mas seus ritos cotidianos e mundanos apontam para a sua negação.

O objetivo deste artigo é analisar as múltiplas imbricações que transforaram em um fenômeno aquilo que, à primeira vista, tinha tudo para ser trivial. No âmbito nacional, ao mesmo tempo em que os rolezinhos representam uma continuidade de um processo histórico da exclusão dos grupos populares dos centros urbanos de camadas médias, eles também são fruto de fenômenos recentes, tais como as políticas públicas de expansão do consumo por parte dos grupos populares, bem como a insatisfação dos protestos de junho de 2013 sobre os rumos do desenvolvimento do Brasil. No âmbito global, os rolezinhos são um produto da expansão do capitalismo e reproduzem a matriz de significados presente no comportamento de consumo de diversas periferias urbanas do mundo: jovens que veneram marcas globais e que, ao ostentá-las, produzem um contraste com o contexto social de penúria em que estão inseridos.

A manifestação latente do rolezinho só pode ser entendida quando destrinchada por meio do cruzamento desses fatores global e nacional, histórico e contemporâneo. O argumento apresentado neste artigo é de que o evento tornou-se um fenômeno porque tem esse poder catalizador de reunir e revelar profundas estruturas da desigualdade social não apenas da sociedade brasileira, mas igualmente das relações políticas e econômicas entre o Norte e o Sul do planeta. Ao contrário de um fenômeno genuinamente nacional sui generis, o rolezinho é uma manifestação à brasileira de um comportamento da periferia global. É igualmente verdade, contudo, que o momento político e econômico do país traz nuanças muito especiais e diferenciadas a esse processo.

Este artigo está baseado em duas fontes de análise. De um lado, fundamenta-se em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular realizada na periferia da cidade de Porto Alegre (capital do estado do Rio Grande do Sul) desde o ano de 2009 (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO, 2012). Nessa pesquisa, entre outras técnicas de observação participante, nós acompanhávamos jovens de 17 a 22 anos em suas idas aos shoppings. De outro lado, durante a explosão desse fenômeno, realizamos uma pesquisa qualitativa de análise dos comentários sobre o tema em blogs e redes sociais. Desse modo, trazemos aqui uma análise concomitantemente de dentro e de fora do fenômeno dos rolezinhos.

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, busca-se traçar algumas características em comum entre o rolezinho e o comportamento de consumo das periferias globais, Na segunda, traz-se uma discussão sobre consumo e marcas entre os jovens da periferia de Porto Alegre. Em seguida, a segregação de classes e de raça no Brasil é contextualizada para compreender as reações da sociedade brasileira ante ao fenômeno. Finalmente, analisa-se a passagem do rolezinho para o Rolezinho, ou seja, o processo de visibilidade e debate público que transformou a diversão em shoppings centers em um evento da política nacional.

Marketing do Amor: periferias globais, mimeses e desigualdade

A devoção ao consumo de marcas caras e/ou de luxo entre grupos das camadas mais baixas não é um fenômeno novo, tampouco restrito ao Brasil. Com nuanças locais e nacionais, trata-se de um fato estrutural à condição periférica na modernidade. Para Newell (2012), que analisou o consumo de marcas ocidentais entre jovens pobres da periferia de Côte d’Ivoire, os integrantes desses rituais de consumo estão resistindo ao abandono que circunda a suas vidas.

Friedman (1990) já chamava atenção sobre a importância de se levar a sério o entendimento desse tipo de fenômeno. O autor analisou a LA SAPESociete des Ambianceurs et Personnes Elegantes, que é um movimento que recruta seus membros das camadas mais pobres do Congo e se caracteriza pela adoração às marcas de luxo europeias. A exibição de tais roupas é feita em um ritual, conhecido como “dança das grifes”, no qual as etiquetas famosas são camufladas pelas lapelas dos casacos e ostentadas como convém, como parte do ritual de status. No caso dos congoleses, o aparecer e o ser são idênticos: você é o que você veste. Isso não ocorre porque a “veste faz o homem”, mas porque o vestuário é a expressão imediata do grau da força vital que a pessoa carrega dentro de si, e a força vital é sempre e em toda parte exterior. O consumo do vestuário, para Friedman, é cercado de uma estratégia global vinculada à força que proporciona, que não é apenas riqueza, mas também saúde e poder político. Por isso, trata-se de um ato essencial no processo de negociação identitária. Levando uma vida miserável, numa carência total pela sobrevivência, todos os recursos desses sujeitos são canalizados para compras a prazo de vestuário masculino, desde camisas e meias até calças, ternos e sapatos, evocando prestígio e um estilo de vida que este vestuário todo se destina a manifestar.

Segundo Lemos (2009), as periferias vêm se apropriando cada vez mais do "chic" e que isso se potencializa e torna-se mais visível graças à internet. O fenômeno está em vários lugares do mundo, como na Inglaterra, onde existe a turma dos "chavs", também conhecidos como grupos da periferia de Londres, que adotaram a caríssima marca Burberry como sua preferida. Ficou comum ver "chavs", muitos deles desempregados, andando pelas ruas de Londres com blusões da Burberry. No Brasil, algo parecido acontece na rua e na internet. A Lacoste, por exemplo, que tem uma campanha claramente direcionada para um público de elite, tornou-se uma das marcas favoritas das periferias. Segundo a letra de um funk do Bonde da Lacoste: "desde que eu me conheço como gente/ que a Lacoste é o símbolo da gente" (LEMOS, 2009, s/p).

Existem diversos outros exemplos desse tipo de fenômeno que ocorre nas periferias dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Ainda que manifestações sejam muito diversas, respondendo a contextos plurais, é possível pensar para além da esfera local e nacional. Em comum, encontra-se o fato de que grupos das camadas menos privilegiadas se apropriam dos símbolos de poder e riqueza do capitalismo global. Destaca-se igualmente uma hegemonia masculina na presença nos rituais públicos. E as marcas são símbolos dessa desigualdade.

No que se refere à dimensão do capitalismo global, a relação desses jovens pode ser compreendida como uma resposta, às avessas, ao “marketing de amor” (FOSTER, 2005) ou “de evangelização” criado pelas grandes empresas na atualidade. Ainda que toda a pesquisa do público alvo seja direcionada para atingir as elites, nem sempre é possível controlar a vida social de uma marca irá ganhar. A ideia do amor e da religião surge a partir do reconhecimento totêmico de que os grupos precisam de símbolos para se identificar. Uma vez criado o culto do amor, o consumidor é capaz de fazer qualquer sacrifício pelas marcas e a pagar qualquer preço. Clientes passam a ser “embaixadores da marca” – para citar o jargão da área. O fetiche da mercadoria é supervalorizado pelos gestores da marca, a fim de criar uma relação de amor, que vai além da razão, entre o sujeito e o símbolo (FOSTER, 2005).

Esse fenômeno estrutural das periferias globais, nuançado por contextos locais e nacionais, provoca angústia das elites e desespero do setor de marketing das grandes corporações, que hoje precisam responder a um problema que eles mesmos criaram: a produção do sonho e do amor às marcas. Como disse publicamente um CEO da marca Adidas: encontramos o nosso inimigo, somos nós mesmos[2][2] Extraído de Naím, M. 2006, Illicit. New York, Archor Books. Ou como anunciou um dos maiores produtores de pirataria, então preso nos Estados Unidos: Vocês (as marcas) criaram um sonho, agora aguentem[3] [3] Extraído do documentário a Indústria da falsificação, veiculado pela GNT Brasil em 2004. Fica evidente aqui o papel subversivo desses jovens ao desafiarem a racionalidade do marketing e atuarem em um campo não previsto pelos gestores das grandes marcas. O marketing do amor, assim, revela algumas contradições da modernidade: ele é dirigido às elites, mas acaba atingindo as populações mais desprovidas de capitais, as quais, ao se apropriarem do símbolo dos outros, reinventam a sua própria condição de pobreza, ressignificando a carência em abundância.

No entanto, a discussão não se finda no reconhecimento de certa subversão. A desigualdade, afinal de contas, continua presente, permanentemente reproduzida e reinventada – como irei discutir no item seguinte. Na realidade, estamos diante da tensão gerada pela mimese, tão cara aos estudos coloniais e pós-coloniais. Qual o limite entre a apropriação e a resistência? Desde as primeiras análises sobre a imitação do estilo do colonizador por parte do colonizado – presente nos rituais analisados por Jean Rouch, no filme Le Maîtres Fous, e no livro Kalela Dance de Micthell (1956) - fica exposto o processo de extrema violência sofrida por estes grupos ao imitarem as vestes dos grupos hegemônicos. Bhabha (1994), em sua análise clássica sobre a mimese, conclui que existe certa paródia na imitação, por meio de sua exacerbação, o que, no final das contas, é um ato subversivo de resistência. Essa interpretação será fortemente criticada por Ferguson (2006), quando pontua que há qualquer subversão na imitação, mas antes um apelo desesperador, por parte dos grupos menos favorecidos, por pertencer à ordem hegemônica.

A globalização do século XXI certamente produz um mundo muito diferente do contato inicial entre colonizador e colonizado da metade do século passado. Essas fronteiras estão mais diluídas e a sociedade está mais interconectada. No entanto, é inegável que as formas de dominação material e ideológica se reinventam e se mantêm. Por isso, consideramos fundamental entender o universo dos rolezinhos dentro desse espectro de uma desigualdade global vivida ritualisticamente no âmbito local. Observando o consumo dos jovens da periferia brasileira que se apropriam de símbolos que não foram projetados para eles, nós tendemos a concordar com a posição sintética de Newell (2012) que procura uma posição intermediária entre a subversão de Bhabha e o apelo de ser igual de Ferguson. Há resistência simplesmente pelo fato de que esses jovens negam o papel da pobreza e confundem as fronteiras de classe, ou ao menos, fazem com que essas tenham que ser reinventadas muito rapidamente. Mas há concomitantemente um apelo, bastante conservador, de reprodução das estruturas de poder por meio do desejo de se aliar aos símbolos de poder.

Dos rolezinhos de Porto Alegre: a cosmologia e sociabilidade juvenil da periferia

O rolezinho é um dos aspectos que compõem um fenômeno mais amplo das periferias urbanas do Brasil – os chamados “bondes”, as gangues, os grupos e os clãs juvenis. Portanto, as reuniões aos shoppings para passear, comprar e namorar é uma das características da sociabilidade juvenil entre outras práticas e cosmologias periféricas. Após o fenômeno midiático, esse aspecto foi supervalorizado, englobando os demais e sendo isolado como variável analítica. Se, durante o dia, os jovens vão aos shoppings, a noite vão ao baile funk do bairro. A diferença é que, no primeiro, eles rompem as fronteiras segregacionistas de classe e raça e tornam-se visíveis e, no segundo, mantêm-se em seus limites territoriais longe do contato com as camadas mais abastadas.

Nessa direção, o funk ostentação é outro fenômeno intimidante relacionado aos rolezinhos. Trata-se de uma versão - que se manifesta mais fortemente em São Paulo, mas não apenas lá - que cultua carros, dinheiro e grifes em níveis propositalmente exacerbados, representando a negação do papel previamente definido socialmente que versa sobre a pobreza como destituição, ausência e carência. Como dizia um de nossos entrevistados, em 2010, sobre a sua condição de consumidor “eu não sou pobre, favelado, eu estou podendo”. O funk é um discurso político que ocorre por meio da estética criativa e positivada (ver MIZRAHI, 2011, 2012), forjando, assim, uma contradição profunda: os grupos mais baixos da sociedade apropriando os símbolos maiores de status e de riqueza. Conforme declarou na televisão o rapper Emicida “é um direito nosso cantar a felicidade. A sociedade ostenta, via propaganda, novela; mas quando a favela faz, acha que a favela é que criou o consumismo”.

Esse conjunto de práticas que compõem a cosmologia juvenil – do rolezinho ao funk - é uma expressão cultural que emblematicamente produz rituais de dispêndio, combinando elementos do capitalismo global e elementos da cultura local. O consumo, em uma perspectiva sociológica e antropológica, ocupa um lugar central na subjetividade moderna, uma vez em que norteia o self tanto por meio da demarcação de seus contornos individuais quanto pela possibilidade de atuar como um elo de pertencimento social (BOURDIEU, 1984; DOUGLAS AND ISHERWOOD, 1979; MILLER, 1987, 1995). Sendo uma fonte de poder, agência, imaginação e prazer (APPADURAI, 1996; CAMPBELL, 1987), consumir é muito mais do que comprar: é um ato que concomitantemente aprisiona e liberta os indivíduos das estruturas sociais entre as quais estão transitando.

Gangues, crime e sociabilidade juvenil

Em nosso estudo etnográfico realizado na periferia de Porto Alegre, costumávamos acompanhar os jovens da periferia que pertenciam aos chamados “bondes” em seus momentos de sociabilidade, seja nos rolezinhos dados aos shoppings centers, seja na própria periferia. Inicialmente o termo bonde servia para designar os grupos de jovens - geralmente da mesma comunidade ou bairro - que iam juntos a bailes funks e participavam de pichações, remetendo a um tipo de sociabilidade ligado a transgressões, criminalidade e tráfico de drogas, o que pode ser entendido como as conhecidas gangues juvenis. Porém, o termo bonde se popularizou e agora designa vários tipos de turma de jovens, sem nenhuma relação direta com o mundo do crime, ainda que sempre o tangenciando.

A relação do consumo com o crime era bastante tênue. Geralmente, os jovens da mais baixa escalada do tráfico de drogas ou com menos poder nas redes locais eram quem cometiam os crimes. Também era comum que cada bonde, gangue ou turma tivesse alguém responsável pelos assaltos. Estes realizavam pequenos furtos ou até mesmo grandes crimes seguidos de homicídio e faziam circular na periferia os objetos e o capital adquirido.

Muitos dos jovens pesquisados, portanto, admitiam que uma fonte importante de aquisição de bens era advinda do mundo do crime. Como eles não cometiam crimes diretamente, eles não se achavam parte desse universo que moralmente condenavam, mas que atuavam tecnicamente e legalmente como receptadores. No entanto, é preciso distinguir o âmbito moral e evitar generalizações exóticas sobre o tema. Durante o fenômeno dos rolezinhos, uma das principais críticas endereçadas a esses jovens eram de que se tratava de vagabundos (que deveriam trabalhar em vez de passear) e que só poderiam comprar uma vez que fossem assaltantes. No universo empírico observado, esse tipo de acusação é injusta. Muitos dos jovens trabalhavam e faziam isso justamente por causa do consumo. Explicava-nos Beto (18 anos): “eu era um vagabundo, daqui comecei a ver que estar bonito é importante, então, eu devo às marcas o fato de ter começado a trabalhar por poder comprar”. É evidente que, sem qualificação para ter um bom emprego, um salário mínimo não era suficiente sequer para pagar o boné que vestiam. Mas uma das coisas que nossa pesquisa apontava era justamente a complexidade e a criatividade dos arranjos que eles faziam para conseguir comprar uma coisa cara.

Um das estratégias que mais nos chamava atenção era o mercado interno de roupas usadas que funcionava, ao mesmo tempo como um definidor da escala de poder interna. O patrão do tráfico era quem detinha as roupas mais novas. Uma vez que mudava a estação ou deixava de ser novidade, vendia-se para alguém abaixo. Nossos informantes, por exemplo, seguidamente compravam dos patrões do tráfico e, assim que adquirissem uma peça nova, vendiam suas antigas para os imediatamente abaixo e assim o dinheiro circulava no mercado interno (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO 2012). Outra pesquisa sobre consumo popular de modo mais amplo, realizada por nós, apontava que esse consumo era estritamente baseado na aquisição de coisas consideradas “boas de verdade” e, portanto, originais. A positivação do self passava necessariamente pela negação da pirataria. Como disse uma antiga informante, Carminha (37 anos em 2005): “as pessoas acham que só porque eu sou pobre eu não posso gostar de coisa boa”. (PINHEIRO-MACHADO E SCALCO, 2010). O rolezinho no shopping, portanto, tem uma razão ao mesmo tempo prática (de pesquisa e busca de informação de moda) e simbólica (de uma vinculação com o território da economia formal e da abundância).

Para além da parte relacionada ao consumo em si, o rolezinho também se constituía uma fonte de diversão. As periferias urbanas das grandes cidades brasileiras são destituídas de espaços com infraestrutura de lazer adequada. Todavia, pelas razões já expostas, não acreditamos que essa seja a motivação principal da escolha pela diversão num centro comercial ao invés de um encontro nas praças públicas, já que a chave da questão é justamente a inserção na sociedade de consumo. Durante a semana, os jovens trabalhavam, estudavam e ajudavam nas tarefas domésticas. Nos finais de semana davam um rolezinho no shopping e à noite iam ao baile. Nessa sociabilidade de trânsitos territoriais e sociais, havia um recorte de gênero bastante definido. Os rolezinhos são um fenômeno majoritariamente masculino ou orientado pelo poder masculino. São os meninos os que mais se preocupam com marcas, que formam gangues e juntos desfilam para a atração das minas (gíria para meninas). Trata-se de um jogo de sedução que se estende do shopping às danças sensuais dos bailes funk. Segundo os entrevistados, quanto mais marcas usar, mais minas irão atrás dos grupos. O poder dessas gangues é medido, em última instância, pela quantidade de seguidoras e fãs que eles conseguem capitalizar. E segundo a visão dos meninos, é uma relação comoditizada já que quanto mais se ostenta, mais as meninas seguem. Quando se estabelece uma relação após o flerte, é fundamental que os meninos consigam continuar a prover bens caros para as mulheres.

A figura do homem poderoso e provedor se destaca nesses circuitos de sociabilidade. Nesse sentido, retroalimenta-se o engajamento com o crime, seja ele direto ou indireto. Em pesquisa realizada entre jovens das classes populares em Porto Alegre, em 2001, Soares (2004) apontava que e o modelo reinante entre esses jovens era o de “macho violento, arrogante, poderoso e armado, instaurando um magnetismo perverso que enseja a emulação da prepotência armada.” (SOARES, 2004, p.152). Não é difícil entender o fascínio que o tráfico, o consumo, as armas e o mundo do crime exercem sobre os jovens. Importa lembrar ainda o que Fonseca (2000), ao realizar sua etnografia nos anos 80 na periferia de Porto Alegre, já apontava em seus estudos que essa tendência dos jovens a sublimar a aventura e ressaltarem o heroísmo existente na “vida bandida”, identificando-se com os líderes do tráfico local. A arma, portanto, entre outras mercadorias é, também, uma mercadoria de poder e instrumento extremo simbólico de distinção.

Todo esse conjunto de eventos da sociabilidade juvenil pode ser compreendido dentro de uma cosmologia performática da periferia marcada por rituais de devoção e sacrifício (MILLER, 1998) e do desperdício e da ostentação (NEWELL, 2012). Os meninos vestem-se literalmente “dos pés à cabeça” com roupas de marca, sempre exibido os símbolos e as etiquetas: sapatos, meias, bermudas, camisetas, correntes de prata e ouro (ou simulacro), jaquetas e bonés. Eles pagam até R$ 500,00 por um boné de marca por exemplo. Vestidos a rigor, os grupos vão para o shopping e dão um rolezinho, que se assemelha a um desfile. Além disso, muitos grupos rivais podem se encontrar para brigar em local previamente marcado através do site de relacionamento social. Os confrontos se valem de arma de fogo, facas e luta corporal. Não é raro que essas gangues tivessem nomes de marca “o grupo da Nike inimigo do grupo da Adidas” e o grupo “da Lacoste/jacaré inimigo do grupo da Oklen/Rinoceronte”. Outra expressão ritual dos bondes, que ocorre de forma pacífica, acontece nos bailes funk, nos quais, também vestidos a rigor, os jovens reunidos entram na festa, dançam passos ensaiados e proclamam palavras de ordem. A pichação e grafite também são marcas deixadas pelos jovens, como forma de desafio à ordem e marcação de uma vida no limite da transgressão, que se vincula ao estilo de vida juvenil.

A internet é um espaço de convergência onde se marcam os encontros diurnos – shoppings e brigas em praças públicas – e onde se publiciza a identidade de grupo por meio do compartilhamento de imagens dos jovens bem vestidos e, muitas vezes, portando armas. Como pontua Newell (2012), andar em grupo é um ritual público e performático de exibição das redes sociais, compondo o que a autora chama de espetáculos da riqueza e do sucesso. A força ritual emblemática desses eventos de ostentação reside justamente no fato em que são realizados em contextos de pobreza, onde a priori se pressupõe a carência e não a abundância.

Segregação, preconceito e consumo como inclusão

A democracia racial, através da qual se acredita que as diferentes raças convivem em harmonia, é um dos mitos fundadores da sociedade brasileira. Nas ciências sociais, essa ideia tem sido constantemente contestada, apontado para um modelo que, na prática, camufla um processo de segregação perverso e profundo. Um dos pontos altos da midiatização dos rolezinhos foi a sua capacidade de trazer à tona o debate da segregação social e espacial e da desigualdade, especialmente a partir do momento em que o critério para barrar a entrada de jovens nos shoppings centers passou a ser completamente aleatório, calcando-se na classe e na cor. A força policial foi usada para que se cumprisse a ordem judicial de proibição dos rolezinhos e isso foi amplamente legitimado pela população, conforme indica a pesquisa mencionada no início deste artigo. Em suma, os negros da periferia estavam sendo uma vez mais vítimas de um apartheid velado a la brasileira (nesse caso, nem tão velado assim).

No Brasil, os grupos populares brasileiros, desde a abolição da escravatura, sempre ocuparam espaços da cidade como forma de diversão investida de política. Abundam exemplos na história da forma como esses trânsitos foram barrados por meio de políticas higienistas e repressivas, como por exemplo, a violência usada pelo Estado para com os capoeiras no Rio de Janeiro no início do século 20 (MURILO DE CARVALHO, 1987). Em Porto Alegre, na década de 1940 e 1950, a prestigiosa Revista do Globo trazia frequentes matérias sobre os grupos "marginais" que tiravam a paz da população urbana que queria viver o sonho de uma cidade europeia, como analisa Pesavento (1992). A marginalidade tem assumido múltiplas faces na história do Brasil, mas há algo de estrutural: ela é vista como algo fora do lugar, uma massa de vagabundos. Nos anos 1970, Durham (1987) e Oliveira (2003), já mostravam que, na história do país, criou-se a imagem de um Brasil moderno e desenvolvido, e de um outro, arcaico e subdesenvolvido. É possível ainda acrescentar: um, branco e de elite, outro, negro nas periferias. Esses "dois Brasis" não se tocam, mas, quando isso acontece, o primeiro lado usa de suas armas mais poderosas: a força policial.

Apesar de terem aparecido muitos argumentos de que a população era contra os rolezinhos simplesmente porque eles causavam tumulto e aglomeração no espaço público, ficava evidente que tamanha raiva dirigida a esses grupos não residia apenas no fato de eles estarem causando bagunça. O grande descontentamento vinha das camadas médias e altas, que sentiam a sua paz ameaçada em um lugar até então protegido da desigualdade. Entre esses setores, a verbalização expressas nos comentários das redes sociais explicitava o preconceito anteriormente implícito. Entre um universo de mais de mil comentários analisados em redes sociais e blogs, podemos destacar duas categorias: o trabalho e a violência.

Sobre o trabalho, mesmo que os rolezinhos fossem uma prática de adolescentes nos finais de semana, os principais comentários diziam algo como: “vão trabalhar, seus vagabundos!”/”por que não pegam em uma enxada ao invés de passear?”/”por que não fazem rolezinho na agência de emprego?”/”chega de rolezinho, vamos trabalhar negrada”. A condição da pobreza nesses comentários era atribuída a eles próprios e sua suposta preguiça e a enxada, símbolo do trabalho escravo no Brasil, surge como objeto emblemático. Outro tema recorrente era a violência que esses meninos deveriam sofrer pela repressão policial: “esses favelados vagabundos têm mais é que levar porrada da polícia para aprender a ter jeito na vida”/ “essa negrada que apanhou da polícia foi pouco. Deveriam ter apanhado mais”. O imaginário escravagista está implícito nesses discursos, especialmente quando se refere à necessidade de punição à suposta indolência dos negros.

Os comentários das redes sociais trouxeram à tona os sentimentos escondidos no modelo da ideologia da harmonia e da cordial. Os rolezinhos, nesse sentido, foram um dos temas mais importantes dos últimos anos para identificar o preconceito de classe e de cor da sociedade brasileira. Na verdade, o fenômeno condensou em um período muito curto as reações das elites brancas brasileiras de verem seus espaços ameaçados. Como manifestou um colunista de uma das maiores revistas do Brasil, ao declarar que o rolezinho é delinquência, fruto da inveja dos pobres, selvagens, que invejam o consumo da civilização. Em sua coluna acessada por milhares de pessoas por dia, o colunista diz que os jovens dos rolezinhos são bárbaros incapazes de reconhecer sua própria inferioridade e têm inveja da juventude rica, da riqueza alheia e das pessoas educadas [4] [4] Rodrigo Constantino em “O rolezinho da inveja”. Revista Veja. 14 de Janeiro de 2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/o-rolezinho-da-inveja-ou-a-barbarie-se-protege-sob-o-manto-do-preconceito/. Acessado em 02/02/2014.

 

Esse tipo de visão, na verdade, tem se manifestado desde a implementação da política de cotas raciais nas universidades, bem como os programas sociais dos governos Lula e Dilma Rousseff, como Bolsa Família (transferência condicional de renda) entre outros. Desde o início das políticas de inclusão social, os preconceitos anteriormente camuflados estão vindo à tona para na cena pública, deixando claro que o rompimento das barreiras da desigualdade social brasileira confunde uma nação acomodada em sua própria segregação. Segundo Souza (2014, s/p):

Esses fatos (a reação ao rolezinho) são mais um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes populares. Desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares, ela não é um problema real [5] [5] Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, 18/1/2014.

No caso dos rolezinhos essa tensão é evidenciada especialmente porque emergem em um tempo de mudanças sociais que dá visibilidade aos grupos populares. Até a década de 2000, o acesso a certos bens de consumo no mercado interno era restrito às classes privilegiadas, configurando um processo de estratificação social. A nova fase de crescimento da economia atraiu investimentos estrangeiros para o país. O Brasil, então, juntou-se ao grupo de economias emergentes e participa das cúpulas como o G20 e os BRICS. Neste contexto, o governo nacional começou a investir massivamente em políticas de inclusão social e no acesso ao crédito. Segundo dados oficiais, de 1999 a 2009, 31 milhões de pessoas deixaram a chamada “classe D” e entraram para a classe média do Brasil. Entre 2003 e 2009, cresceu 24 milhões de pessoas. Nessa nova sociedade, o consumo desempenha um papel central e legitimado de inclusão e ascenção social.

O aumento do consumo popular se manifesta em vários setores. O principal é o de bens duráveis, que englobando eletrodomésticos, eletrônicos e móveis, é um dos que mais tem se expandido. Os novos membros da chamada Classe C estão comprando móveis e eletrodomésticos em grande quantidade, sugerindo que havia uma demanda reprimida desses bens. Os bancos sentem-se encorajados a ampliar o volume de dinheiro emprestado em função da crescente inclusão das mais baixas no consumo e as altas taxas de juros cobradas em várias modalidades de crédito. Comprar a crédito tem sido historicamente a forma de adquirir produtos no Brasil. Com frequência, os juros cobrados são escorchantes, mas esta é a única maneira de obter os produtos. Além disso, diversos setores do comércio e de serviços agora estão disponibilizando atendimento especial para as camadas emergentes. É notório, por exemplo, que atualmente os grupos populares estão andando de avião, atividade que anteriormente representava status e exclusividade às camadas mais abastadas. (OLIVEN E PINHEIRO-MACHADO, 2012).

O rolezinho é um ritual que maximiza esses novos tempos da economia nacional, representando a ostentação em uma sociedade em que a inclusão passa pelo consumo, atividade amplamente legitimada socialmente como forma de ascensão. Simbolicamente, ele representa o rompimento das barreiras de classe e dá visibilidade ao tema do consumo das classes populares e ao acesso das mesmas a novos espaços e mercadorias. O preconceito, nesse contexto, é uma força que reage à mudança – a não aceitação da invasão de espaços das elites - e procura sufocá-la e menosprezá-la. Nesse último aspecto, é importante pontuar que além dos comentários sobre trabalho e violência que apareciam na internet, a ridicularização dos jovens era constante.

Assim, nos deparamos com uma contradição do modelo de crescimento brasileiro baseado no consumo interno. Como alguns sociólogos já vêm pontuando (Souza, 2009 entre outros), a aquisição de bens não é suficiente para mudança social, evidenciando que o modelo de distinção bourdiano (BOURDIEU, 1984) ainda mantém-se pertinente: a ausência de capitais simbólico e social, somado à carência de serviços e bens públicos (que o estado brasileiro continua negando diariamente às classes menos favorecidas), faz com que essa classe emergente no consumo mantenha-se como classe trabalhadora precária. Sem educação, trabalho e outros direitos fundamentais, o consumo passa a ser o único ponto – quase estereotipado – de (auto) inclusão social, o que pode ser rechaçado e ridicularizado pelas camadas mais altas que, rapidamente, reorganizam seus marcadores de classe e distinção.

Do rolezinho ao Rolezinho: dimensões políticas do fenômeno

Como no caso do encontro do colonizador e do colonizado, analisado por Bhabha (1994), os grupos dominantes (aqui o mercado) criaram um sonho, um universo de glamour e distinção e a sociedade cria mecanismos para classificar quem está fora desse modelo como um ser inferior. Quando veem seus espaços e símbolos de poder dentro de uma estética singular popular, os grupos dominantes sentem um desconforto perturbador, como no caso do encontro colonial. Ele olha o Outro vestido como ele e não se reconhece. É o jogo de espelhos desconcertante do encontro de classes da sociedade brasileira.

Uma das questões mais discutidas nos últimos tempos no Brasil e na imprensa internacional sobre os rolezinhos é se esse ato é político ou não. De certa maneira, existia uma pressão muito grande para mostrar que não há reinvindicação social e que tampouco se configura um movimento social. O argumento de que esses jovens apenas querem “zoar” foi amplamente usado para discorrer sobre despolitização. Por meio desse discurso, tem-se uma forma de deslegitimar ou menosprezar a riqueza de significados desse ato, como a manchete do The Economist: Kids just want to have fun[6][6] “Kids just want to have fun”. The Economist, 20 de Janeiro de 2014.. No Brasil, igualmente, os principais meios de comunicação do país procuravam noticiar o evento como uma brincadeira e não como um protesto.

Seria importante, nessa direção, distinguir o rolezinho – o ato de ir ao shopping para consumir e se divertir realizado há muitos anos pelos jovens da periferia das grandes cidades do Brasil – do Rolezinho, o fenômeno que ganhou visibilidade nacional e internacional e acabou se transformando em outra coisa, mas ainda em continuidade com as suas origens. A distinção entre esses dois momentos do ritual é importante sociologicamente, mas nada indica que o primeiro era apolítico. Ainda que nós tenhamos observados que os jovens de nossa pesquisa não tinham nenhuma vontade de revolucionar o mundo estruturalmente, no sentido de uma contestação da ordem estabelecida (e, ao contrário, almejavam justamente a aliança com os símbolos de poder e não a sua destruição) é impossível esvaziar a carga política desses eventos.

Não era um movimento social no sentido de uma ação coletiva clássica. Mas o conceito de política precisa ser minimamente contextualizado e alargado. A acepção política aristotélica versa sobre a participação engajada na vida pública da polis. A cidadania é o ato de se integrar plenamente à vida da polis. Os rolezinhos podem ser entendidos como uma demonstração do “direito à cidade”: a liberdade de ir e vir, de criar e recriar os espaços e a cidania. E ao fazer isso, modifica-se a realidade. Esses jovens vivem em um contexto de violência estrutural: burocracia, hospital e escolas que não funcionam. Somado a isso, há um contexto brutal de discriminação. “Eu me arrumo bem para poder ser aceito no shopping e não ser confundido com bandido, preto e favelado. As pessoas tem que entender que na favela também tem gente que gosta de coisa bonita” – disse um menino da periferia de Porto Alegre, que está acostumado a ser seguido pelos guardas privados do shopping center. A negação da pobreza como carência, a apropriação de espaços urbanos e símbolos da sociedade capitalista e o próprio reconhecimento do racismo sofrido são atos de constetação política.

No entanto, isso ocorria ainda no plano da interação social diária, implícita e invisível. Em dezembro de 2013, um grande rolezinho foi marcado nas redes sociais em um shopping de São Paulo, tendo recebido até seis mil confirmações de presença nas redes sociais. O evento atraiu a atenção da mídia e a apreensão dos consumidores. Assim, o rolezinho se transformou em Rolezinho. O fato de isso ter acontecido no final de 2013 e início de 2014 é fundamental para compreender essa mudança, uma vez que os protestos de Junho ainda estavam vivos e mal resolvidos entre a população.

O ano de 2013 começou tenso no Brasil. Diversos protestos vinham sendo marcados por todo o país pelas mais diversas causas, mas principalmente tendo em comum a revolta com os custos humanos e sociais da Copa do Mundo no Brasil em 2014. O anúncio do aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre e, posteriormente, em São Paulo, foi a causa estopim para a explosão de um dos maiores movimentos populares da história da nação. A vitória obtida nas ruas da pauta inicial contra o aumento foi suficiente para fazer com que os grupos organizadores dos protestos parassem as manifestações, especialmente quando elas começaram a se tornar difusas em sua pauta política. Os protestos acabaram, mas a angústia continuou. Em certa medida, essa inquietação popular representa o espírito desse ano que começou em Junho de 2013 e termina com a Copa do Mundo em Julho de 2014: um ano reflexivo especialmente sobre os rumos do desenvolvimento nacional, em que o megaevento esportivo deveria coroar a consagração brasileira na economia mundial. Os protestos, que não se encerraram em junho, deixam claro que esse sucesso alcançado na performance econômica internacional não está bem resolvido internamente em termos de desenvolvimento social.

O grande rolezinho marcado recebeu atenção da mídia e imediatamente tornou-se um fenômeno de discussão nacional. A politização do movimento ocorreu de diversas maneiras. Em primeiro lugar, gerou solidariedade dos movimentos sociais, que começaram a promover diversos tipos de rolezinhos em diversos lugares. Em segundo, isso gerou um profundo debate no país, trazendo à tona o tema da pobreza no Brasil. Milhares de crimes de racismo foram denunciados nas redes sociais, ao mesmo tempo em que eram recriminados por outros grupos que se solidarizavam com a violência explícita nas redes sociais. Houve, certamente, um processo de politização que ocorreu durante e depois do fenômeno, atingindo grupos neutros. Aqui, é importante mencionar o papel dos intelectuais que estiveram amplamente presentes na mídia denunciando e explicando o apartheid à brasileira. Por fim, o próprio rolezinho original acabou se politizando em maior ou menor medida, dependendo do lugar. De um modo geral, se os jovens anteriormente só queriam brincar, a midiatização os colocou como protagonistas sociais e, ao mesmo tempo, estampou o preconceito sofrido. Assim, muitos jovens começaram a mudar seu discurso, versando sobre a positivação da identidade de juventude da periferia e sobre a necessidade de a sociedade reconhecer que, como manifestou um jovem da periferia de São Paulo nas redes sociais, “pobre também gosta de coisa boa, pobre também quer circular, pobre também quer existir”.

Considerações Finais

Na introdução desse artigo, argumentamos que somente o encontro de variáveis locais e internacionais, históricas e contemporâneas, poderia explicar os rolezinhos. Por um lado, procuramos mostrar que o consumo de marcas de luxo por parte dos grupos menos favorecidos, seguido do ritual da exibição, é um fenômeno das periferias globais. Isso nos indica que não podemos analisar o caso em confinamento nas fronteiras dos problemas nacionais. As raízes desse tipo de evento encontram-se nas contradições e a ironias do capitalismo moderno que - ao reforçar o imaginário de poder, distinção e sucesso obtido a partir da vinculação não mais a produtos, mas a símbolos - acaba por generalizar esse sonho a grupos bem distantes do público alvo das grandes corporações. As marcas, assim, são vistas como uma chave onírica que dá acesso à porta de saída de um mundo marcado pela violência estrutural.

No Brasil, as políticas recentes de inclusão social e aumento de renda legitimaram socialmente esse modelo de desenvolvimento baseado no consumo, que, na verdade, sempre foi uma realidade entre as camadas mais elevadas, mas ausente nos setores desprovido de crédito e de dinheiro. As oportunidades de aquisição de bens atualmente são muito maiores e, cada vez mais, os grupos populares conseguem comprar – a custa de algum sacrifício – muitas das coisas que almejam. Os jovens, dentro de um estilo de vida peculiar à sua geração, tendem a ter uma relação mais visceral, exacerbada e ritualizada com essa lógica operante. Ao mesmo tempo em que eles afirmam a positividade de seu self por meio das roupas exibidas publicamente, despertam a apreensão e o preconceito das camadas mais elevadas que veem seus privilégios a bens e espaços ameaçados. O preconceito, assim, procura reordenar um estado de ordem das coisas e manter “o pobre em seu lugar”.

Há, de fato, uma nova realidade que aponta para a redução da pobreza no Brasil, ainda que isso seja acompanhado de problemas estruturais profundos. E isso bagunça a sociedade de classes. É evidente que as elites possuem mecanismos de reprodução social, os quais os grupos populares estão desprovidos. Da mesma forma, é notório o fato de que as classes emergentes no consumo ainda sofrem de uma realidade social precária e que o consumo, por si só, não resolve as profundas tensões da histórica segregação social no Brasil. Por outro lado, é preciso reconhecer que os protestos de junho afloraram o envolvimento político da sociedade brasileira, que cada vez mais questiona sobre seus próprios rumos do desenvolvimento, transformando, assim, os rolezinhos em Rolezinhos. A visibilidade do fenômeno, o preconceito desvelado, a solidariedade obtida, o engajamento de intelectuais e de movimentos sociais animaram as redes sociais e reverberaram nos jovens da periferia. Nenhum processo de transformação social é imediato, mas o debate público é o primeiro passo para tanto.

notas de rodapé

 
[1] Fonte: Pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em 23/01/2014
[2] Extraído de Naím, M. 2006, Illicit. New York, Archor Books
[3] Extraído do documentário a Indústria da falsificação, veiculado pela GNT Brasil em 2004
[4] Rodrigo Constantino em “O rolezinho da inveja”. Revista Veja. 14 de Janeiro de 2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/o-rolezinho-da-inveja-ou-a-barbarie-se-protege-sob-o-manto-do-preconceito/. Acessado em 02/02/2014.
[5] Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, 18/1/2014.
[6] “Kids just want to have fun”. The Economist, 20 de Janeiro de 2014.

bibliografia

 

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